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A coragem do medo - por Paulinho Freitas

SÃO GONÇALO DE AFETOS

Foto: https://www.agenciaprimaz.com.br/2021/12/10/entre-as-sombras/
Foto: https://www.agenciaprimaz.com.br/2021/12/10/entre-as-sombras/

Eu já pensei em tirar a vida de uma pessoa. Confesso. Sei lá, não sei até onde vai a ignorância humana. Pensar em tirar a vida de alguém, mesmo que seja a sua vida, é o último recurso do mal para provar que Deus estava errado ao criar esses filhos e lhes dar essa maravilhosa terra para viver. Sinceramente, meu Pai Celestial me cobre de bênçãos todos os dias para me arrepender dos pequenos erros que não consigo deixar de cometer e me protege, tirando do pensamento aqueles atos que jamais seriam perdoados se os cometesse.


Naquele dia eu acordei decidido. Eu tinha uma bifurcação à minha frente: ou matava ou seguia outro caminho, sem olhar para os lados ou para trás, eu queria matar! Eu tinha que matar! Era uma questão de honra! O mal que julgava eu ter recebido daquela criatura não merecia nenhuma piedade nem perdão.


De onde eu estava via na esquina um vigia da boca de fumo, eu conhecia aquele cara desde sua infância, vi crescer atrás de bolas e pipas e de repente se transforma num homem, sem nenhuma vontade de ter uma vida normal aos olhos da sociedade. Apesar das tentativas da família e de algumas instituições ele não queria mudar seu destino. Me aproximei e o cumprimentei, ele com o costumeiro sorriso me devolve o cumprimento:


_ E aí tio? Na paz?


Eu respondo:


_ Tudo tranquilo, estou precisando de um favor seu, preciso comprar uma arma, mas tem que ser uma arma sem identificação, para usar e sumir.


O moleque quase ajoelhou para gargalhar. Depois, ao ver que meu semblante continuava sério ele indaga:



_Qual é tio! Depois de velho quer entrar pro crime? Tu ainda aguenta correr dos “vermes”?


Respondi:


_ Irmão, se fosse para responder questionário eu iria à loja e comprava uma. É pra vender sem fazer pergunta. Quanto menos você souber menos tem que falar se alguma coisa der errada. Tem pra vender ou não tem?


Ele me disse que tinha uma pistola 9mm com a numeração raspada e poderia me vender por R$ 1.200,00. Jamais imaginei que o preço de uma arma no câmbio negro fosse tão cara. Nem respondi. Saí andando e pensando num jeito mais barato de executar meu desafeto. Lembrei que eu tinha uma faca de churrasco, daquelas de lâmina curta e cabo longo. No dia seguinte escondi a faca na cintura e fui ao encontro do futuro defunto.


Quando o vi fiquei pensando na vida dele e na minha. Nos filhos dele e nos meus. Valeria a pena eu passar os poucos anos de vida que me restam numa cela onde cabem 10 pessoas e lá estão 80, somados comigo 81? Meus filhos sentiriam orgulho de mim, pena ou vergonha? Os filhos dele, os amigos dele, nossos amigos, o que diriam dessa situação? O que eu lucraria com isso? Provaria que sou macho, brabo feito um ogro que não leva desaforo para casa. Nada mais.


Ele passou por mim sem notar minha presença, sem saber que a morte passou a centímetros dele. Continuei andando, passei no açougue e comprei 3kg de alcatra cortada em bifes grossos para churrasco. Levei lá na esquina e entreguei ao moleque para que ele se divertisse com a galera dele. Disse a ele para comemorar a vida porque nunca se sabe a que horas aquela foice da morte vai passar por nossa jugular.



Dias depois, numa grande batalha contra policiais aquele garoto tirou a vida de muitas pessoas, muitos chefes de família com aquela arma que ele iria me vender. Agora está naquela cela sendo o 81º prisioneiro. Ele é endeusado em sua comunidade, respeitado pelos companheiros de cela e está feliz pelo seu feito. Espero que ele acorde desse pesadelo. Muitos conseguem, ele também pode conseguir.


E eu? Estou feliz também. Não tive a coragem dele, minhas pernas tremeram, minhas mãos tremeram e o medo que senti de ser chamado de assassino e morar naquela cela me fez continuar herói para os meus filhos, um grande cara para as pessoas que me cercam e um companheiro melhor para mim mesmo. Me fez entender que amo meu semelhante, meu igual, meu irmão perante a Deus e jamais teria coragem de ceifar qualquer vida, mesmo aquela que eu julgava que queria envergonhar a minha.


O caminho que escolhi, sem olhar para trás me fez muito mais feliz. O medo me deu coragem para virar a página. E ainda economizei R$ 1.200,00 que já gastei comemorando a vida!

 

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Paulinho Freitas é sambista, compositor e escritor.






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