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A corda

Atualizado: 25 de jul.

SÃO GONÇALO DE AFETOS


Por Paulinho Freitas

Arte a partir de foto de Helcio Albano
Arte a partir de foto de Helcio Albano

APC era meu amigo de infância. Morava ali na Ary Parreiras, rua principal do bairro Paraíso. O pai tinha uma lojinha de ferragens e a família morava no sobrado em cima da loja. Nos dávamos muito bem, apesar de APC sempre querer, e quase sempre levar, vantagem nas brincadeiras com regras por ele inventadas quando perdia em algum jogo.


APC era muito inteligente e foi crescendo tentando mudar a cabeça do pai com relação ao comércio. Ele queria implantar suas ideias, pôr novas mercadorias à venda, dar uma incrementada nos negócios, mas o pai não queria nem ouvir ele falar.


Também não queria que ele continuasse os estudos, o queria prender no balcão do comércio, para pegar experiência e um dia tomar seu lugar. Para isso tinha um filho homem, falava. 


APC terminou o ginasial com muito sacrifício, brigas constantes e intervenção de sua mãe. Naquela época depressão era preguiça. APC foi ficando triste, com o olhar distante. Já não saia de casa nos dias de folga. Entrava no quarto e só saía, depois de a mãe e a irmã muito pedirem para que ele se alimentasse. 


Numa tarde, APC cortou um pedaço de corda na loja, subiu as escadas e entrou no seu quarto, fechou a porta e não saiu nem para jantar. Choveu a noite toda. Pela manhã, quando a mãe o chamou para abrir a loja não obteve resposta. Em desespero e por ter visto ele entrar com a corda no quarto começou a socar a porta e gritar em desespero. O pai arrombou a porta. APC não estava lá. A janela estava aberta, a corda amarrada na grade e pendurada para o lado de fora. Adeus APC. 


O pai era duro na queda. Abriu a loja normalmente e nem se importou com o desespero da mãe e da irmã pela partida de APC e quando a mãe tentava argumentar que era filho dele e se ele não tinha nenhum remorso em não ter tentado sequer se entender com o rapaz e ele, sem levantar a cabeça do caderno de fiados dizia: _não tenho filho. Nunca tive. 


Por dentro o remorso o corroía, não dava o braço a torcer, mas todas as noites chorava sozinho no banheiro e na loja, após o almoço, horário de pouco movimento, pedia perdão a Deus e rogava a graça de ver o filho, nem que fosse em sonho, para que ele pudesse pedir perdão. Aos domingos já subia a ladeira que dá acesso a igreja de N.Sra. das Graças, chorando e pedindo perdão. 


Não sei se foi Deus, pela interseção de N.Sra. das Graças, ou se este escritor de difícil entendimento chamado destino, resolveu atender o pedido daquele português ranzinza e escrever um novo capítulo naquela história. 


Era noite de natal. O pai de APC já não descia para trabalhar na loja. Agora estava alugada para outro tipo de comércio. Passava os dias olhando para os netos, agradecendo a Deus por ter lhe dado uma segunda chance. Via nos netos a oportunidade de se redimir e lhes fazia todas as vontades. Eles eram os únicos em muitos anos que conseguiram tirar um sorriso do velho portuga. 


Quase na hora da ceia, a mãe de APC apagou todas as luzes, todos abraçam o “velho” e gritam: FELIZ NATAL!!!! Quando as luzes são novamente acesas, na frente dele, APC, a mulher e dois filhos. O velho Português, tremendo e em prantos, sem conseguir falar abraçou o filho, que também só chorava e abraçava o pai que ele nunca deixou de amar. O pai, trêmulo e chorando muito, foi com dificuldade até o quarto e de lá trouxe a corda que APC usou para fugir naquela noite de chuva grossa, há vinte anos atrás, e que muitas vezes pensou em usá-la para tirar a própria vida. 


APC, com auxílio da mãe e da irmã tinha fugido para Portugal, onde estudou, se formou, constituiu família e voltou para continuar sua história com o pai que apesar dos pesares, ele nunca deixou de amar. 


Obs: Qualquer semelhança com nomes e fatos, não é mera coincidência. 


Abração APC. 


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Paulinho Freitas é sambista, compositor e escritor 

 


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