Coisas de Deus - por Paulinho Freitas
SÃO GONÇALO DE AFETOS

Acyr, um homem com o coração de ferro. Explosivo, mal educado e mal humorado. Desde a infância, seu mau humor afastava as pessoas, tanto que na adolescência ganhou o apelido de Vietnã. Por qualquer motivo explodia, xingava e batia. Ninguém aguentava Acyr. Formado em engenharia, com empresa própria não dava mole pra ninguém, a empresa só crescia, gerenciada por ele nos mínimos detalhes, funcionário nenhum parava lá por mais de um ano, ninguém aguentava aquele ser humano. Sabe-se lá como conseguiu casar com Norimar e desse matrimônio nasceu Siomara, única filha, único ser humano que o fazia sorrir, e que, no dia do nascimento, ao vê-la, deixou cair uma lágrima, a única de uma vida inteira. Dedicou sua vida inteira àquela filha.
Já seu irmão, Aloysio era só alegria. Sempre cercado de amigos, fazia festa por qualquer motivo. O que tinha não lhe pertencia, não conseguia ver um amigo em dificuldade sem que ajudasse de qualquer forma. Passava noites ouvindo lamúria dos amigos e amigas na adolescência por causa de amores mal resolvidos, incompatibilidade com os pais, essa coisas que adolescente adora fantasiar. Aloysio ouvia, aconselhava, unia... Sempre tinha uma palavra para confortar e incentivar a quem quiser que fosse. Nunca conseguiu se firmar profissionalmente, estava sempre desempregado. Apesar de ser um excelente funcionário, faltava muito porque adorava madrugada, boemia, bebidas e mulheres. Aloysio sempre foi um bom vivam.
Dia desses, ao abrir a porta do escritório pela manhã, Acyr deu de cara com um homem sentado na sua cadeira, atrás de sua mesa, no seu lugar. O sangue de Acyr subiu todinho para sua cabeça, os olhos alargaram e as narinas se abriam e se fechavam como se estivessem batendo palmas de tão forte o seu respirar. Pegou uma cadeira e jogou para o alto enquanto vociferava: _Sai da minha mesa antes que eu te tire a poder de porrada! Quem é você? O que vocês está fazendo aqui? Como entrou?
O homem, sereno, olhava com complacência para Acyr, deu um leve suspiro, daqueles que nossa mãe dá quando a desapontamos e falou: _Uma coisa de cada vez. Primeiro essa mesa não é sua, pois ela não obedece a suas ordens. Se cismar de emperrar uma gaveta ou quebrar um pé, de nada vai adiantar você mandar que ela se conserte, terá de pagar alguém para fazê-lo ou fazer você mesmo. Aliás, você não é dono de nada. Se não pagar os impostos, tudo será devorado pelo Estado. Carros, casa, empresa... Literalmente tudo. Segundo, eu sou Deus! Você me deu um trabalho danado a vida toda. Turrão, egoísta, mal humorado, mal educado, ignorante. Tu és uma “tralha danada!” Eu do Céu! Terceiro, estou aqui, pessoalmente para te dizer que você vai morrer e que vai nascer de novo na mesma hora.
Vai se chamar Acyr, vai ter as mesmas pessoas a tua volta, a mesma família, tudo, tudinho igualzinho. E, vai nascer Acyr e morrer Acyr quantas vezes forem necessárias até aprender a ser gente e assim começar a aprender a ser espírito. Criei os seres humanos e dei a vocês a chance de serem melhores todos os dias, alguns até que se ajeitam outros nem tanto. Mas você? Você superou todas as expectativas. Nem “o lá de baixo” te quer ver por lá. Acha você intragável.
Acyr deu uma gargalhada e devolveu: _Deus não existe! Onde você estava, quando meu pai morreu e eu te chamei noites a fio para que ele me fosse devolvido e você nem estava aí. Tudo o que eu consegui foi sozinho, sem reza e sem vela, só na disposição. Não teve amigo e nem parente pra me ajudar. Agora, meu irmão não pode dar um espirro que vem todo mundo pra casa dele. Nunca fez nada, um vagabundo, desempregado e farrista. Agora me vens tu com essa conversa mole. Não sei se chamo o segurança ou te como na porrada, eu mesmo! E já ia pegando outra cadeira para jogar sobre o homem quando teve o corpo paralisado. Não conseguia se mexer. O homem levantou da cadeira, andou em volta de Acyr falando pausado e macio:
_ Bem, tanto existo que aqui estou. Onde eu estava? Estava te amamentando quando você mordia os peitos de sua mãe, a deixando cheia de dores. Estava nas lágrimas dela nas vezes em que você jogava a comida, conseguida com tanto sacrifício, no chão com prato e tudo alegando que não comia lavagem. Estava nos brinquedos quebrados por pirraça, estava nos amigos espancados, nos assédios morais, na covardia com as pessoas menos favorecidas fisicamente.
Estava no mendigo que te estendeu a mão, se humilhando por uma moeda e você negou. Estava na sua porta, te pedindo um prato de alimento e apesar de você ter o suficiente foi incapaz de saciar minha fome e minha sede. Estava no sofrimento de sua esposa, chorando baixinho, com o rosto enfiado no travesseiro a cada grosseria sua, às vezes até agressões físicas. Estou aqui agora, para te dizer que seu irmão também morreu e este vai ficar junto com seu pai, quem sabe os dois juntos consigam soprar bons pensamentos nessa sua cabeça de merda? Tive que vir pessoalmente porque nenhum santo, nenhum anjo, ninguém quis vier fazer o trabalho, todos me imploraram para que afastasse este cálice, no caso, você, deles. Pelo meu amor! Você é uma das minhas piores criações. Que merda que eu fiz! Eu me perdoe! Bom, recado dado, missão cumprida. Morrendo e nascendo em 3,2,1...Agora!
O velório de Aloysio foi concorrido. Uma festa danada. Muita choradeira, mas muitas lembranças boas, gargalhadas, abraços e saudade. Até queima de fogos teve. Durou um dia e uma noite. Aloysio morreu cantando, cercado de amigos, infarto fulminante.
Acyr também infartou, mas enquanto vociferava com sua secretária, ela tinha ido ao banheiro bem na hora em que ele iria lhe chamar. Enquanto agonizava, parecia discutir com alguém. Não teve velório, o corpo desceu a sepultura no mesmo dia de sua morte, acompanhado da esposa, a filha não foi, estava na maternidade e por “coincidência” deu a luz no mesmo instante em que seu pai falecia. Um lindo menino que recebeu o nome de Acyr.
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Paulinho Freitas é sambista, compositor e escritor.
