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Macula - por Paulinho Freitas

SÃO GONÇALO DE AFETOS


 Foto: Reprodução internet
Foto: Reprodução internet

Numa tarde fria de agosto, mais ou menos seis horas da tarde, estava eu de pé em meu portão, fazendo minhas orações, olhando para o céu e sentindo aquele sereno fininho caindo sobre meu rosto, lavando minha alma e levando meus pecados, quando um carro desceu pela rua lateral, parou na esquina e dele saltaram umas pessoas de branco cheias de sacolas que foram abrindo e depositando o conteúdo sobre um tecido vermelho previamente forrado no chão. Uns alguidares com farofa, pipoca, frutas, etc. Tudo rodeados por muita cachaças, champanhes, uísque, Martini e mais algumas que não sei o nome, além de alguns maços de cigarros. Em determinado momento, uma daquelas pessoas incorporou uma entidade, ela bebia, fumava e gargalhava muito. Alguém lhe entregou um frango vivo, ela mordeu o pescoço do bicho, sugou-lhe o sangue e o depositou sem vida sobre um dos alguidares. Acenderam velas, cantaram, outras entidades foram incorporando e bebendo, gargalhando e dançando.


Depois de algum tempo, as entidades partiram, as pessoas entraram no carro que saiu bem devagar, mas antes que chegassem à outra esquina, Macula, um andarilho catador de reciclagem bem conhecido aqui do bairro já estava de posse de uma das garrafas. Virou na boca e sorveu um bom gole. Ajeitou todo o resto no tecido vermelho como se fosse uma trouxa, pôs nas costas e saiu feliz da vida. Eu ainda falei pra ele: _Macula, Macula, isso não se faz, é um desrespeito. Deixa isso lá. Ao que ele me responde: _Meu chefe, o “santo” não vai zangar não. Ele sabe que eu tô precisando. De mais a mais, ele já bebeu da bebida, fumou do cigarro e bebeu o sangue todinho da galinha. Não custa nada me dar uma parte. A galinha não vai ser ao molho pardo, mas vai na batata! Macula gargalhou como as pessoas incorporadas fizeram anteriormente e foi embora com uma garrafa de Martini nas mãos feliz da vida.



Não passou muito tempo, bem na outra esquina, num sobrado, abriu um centro espírita daqueles que prometem trazer a pessoa de volta em três dias, cobrando um rim por cada dia e a pessoa amada jamais volta. Pilantragem pura. Na varanda várias imagens de entidades guardavam a casa. Num certo dia passou um carro e de seu interior vários disparos de arma de fogo foram feitos em direção a casa. Pura maldade e discriminação. Por via das dúvidas, os responsáveis pelo lugar tiveram que fugir só com a roupa do corpo. Antes que o dia desse o ar de sua graça Macula em várias viagens carregou as enormes imagens para tentar vender em algum lugar depois. Quando as pessoas voltaram para buscar seus pertences já não encontraram nenhuma imagem, nem as grandes e nem as pequenas. Tudo o que pudesse ser revendido ele levou. A mulher, acho que a vidente, que não previu a quase própria morte, se pôs de joelhos e vociferou: _ Dia dois de novembro, dia dos mortos este infeliz vai descer a sepultura! Garanto que desse dia ele não passa! Palavra de “Mãe Fulana!” Desse dia em diante não vi mais o Macula.


Naquele ano, dia 2 de novembro, fui ao cemitério, como faço todos os anos, acender umas velas e rezar por aqueles que passaram por minha vida e deixaram saudade. Aproveitei e acendi uma pro Macula também. Sabe lá!


Ontem, depois de um corre-corre danado, dia muito produtivo, mas muito cansativo, cheguei em casa, joguei uma água no carro, ali mesmo na calçada e depois de guardá-lo na garagem fiquei olhando este céu do mês de agosto, muito diferente daquele do começo desta crônica, lindo, com estrelas e lua. Rezando e distraído fui despertado pelo barulho de um motor de carro parado na esquina. Quando olhei vi, como há anos atrás a mesma cena. As pessoas descendo do carro, forrando o pano vermelho no chão, arrumando uma linda mesa de alguidares com farofas, pipocas, comidas e frutas, além de bebidas e cigarros. As entidades incorporaram, sugaram o sangue do frango, beberam, fumaram, dançaram, gargalharam e foram para o outro plano. As pessoas entraram no carro que saiu bem devagar.


Fiquei esperando para ver se alguém viria pegar aquelas coisas. De repente me aparece um guri de seus 14 anos, embrulha tudo como uma trouxa, põe nas costas, olha para trás e grita: _O pai! Ajuda aqui que tá pesado! O pai do moleque vem pega na trouxa uma garrafa de bebida, dá uma golada, joga a trouxa nas costas e sai andando reclamando do moleque: _Cês tem que aprendê! Eu num vô durá pra sempre não! Esse frango tá bom pra canja!


Era Macula já ensinando a lei da sobrevivência pro seu rebento. Fiquei feliz em vê-lo.

Naquele 2 de novembro, lá atrás, eu deveria ter acendido uma vela para “Mãe Fulana.”


Naquele dia, quem morreu foi ela.


Salve Macula!


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Paulinho Freitas é sambista, compositor e escritor.




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