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O filho do adversário: Cap 2 - por Paulinho Freitas

SÃO GONÇALO DE AFETOS


Foto: Pixabay
Foto: Pixabay

A vingança é um prato apreciado por muitos. Alguns a preferem bem quente, quase em chamas, outros, apesar de pensarem por uns momentos a preferem no ponto: nem quente, nem fria. Com acompanhamento ou sem. Tanto faz. Uma seleta minoria gosta de sorvê-la como um prato dos deuses, bem devagar. A cada garfada um suspiro de satisfação, um sorriso sarcástico e a sensação da alma estar lavada e a honra límpida como as águas dos rios de outrora...


A pequena e linda cidade de Reriutaba, localizada a noroeste do Ceará, com uma população simpática e hospitaleira de mais ou menos 22 mil habitantes, produz algodão, caju, milho, mandioca e feijão, além de possuir ainda grandes criadores de suínos, bovinos e aves. Dizem os mais estudiosos que há ouro e chumbo em suas galerias. A padroeira do lugar é N.S. do Perpétuo Socorro, que é venerada todos os domingos nas missas da matriz e é raro o lar que não possui uma imagem sua muito bem cuidada e com uma vela a seus pés acesa para dar proteção.


Um céu tão azul que chega a doer a vista da gente. À noite é a mais linda que já se viu. O céu parece um manto sagrado de veludo negro bordado com infinitas estrelas azuis que brilham e rebrilham em volta de uma lua que parece sorrir para gente. Neste cenário de rios, matas, gente de bem, comida farta, de quermesses e preces, conversas nas calçadas, namoros nos bancos de jardim, uma paz que não tem fim, aconteceu um encontro prometido e perseguido por anos a fio...


Naquele final de tarde seco e com o ar pesado, o sol não parecia disposto a deixar a terra se refrescar. Queimava-lhe a face como um grande amor lança suas labaredas sobre os corações. Era uma quentura que ao mesmo tempo machucava e ao mesmo tempo acariciava os corpos depois de um mergulho no rio, vento não tinha, apenas um leve soprar para levar o ar até os pulmões.


Como todas as semanas a criançada correu para a estação esperando a chegada do trem, sempre tinha alguém conhecido vindo da capital que jamais se esquecia de trazer balas e doces para alegra-las. Lá longe onde a vista mal podia enxergar surgia a figura imponente do trem, por cima dele podia-se ver o rosado horizonte contrastando com o verde das pastagens fazendo um lindo cartão postal. No céu, nenhum resquício de nuvem, só aquele azul que não se iguala a nenhum outro de tão bonito e liso.


O trem chegou trazendo alegria a todos que na estação estavam. Eram abraços, sorrisos, lágrimas, um falatório sem tamanho tantas eram as novidades trazidas da capital e encontradas na cidade. O último passageiro desceu sem ter ninguém a sua espera, aliás, quando desceu a estação já estava vazia, olhou em volta sem saber bem que direção tomar, acendeu um cigarro e saiu caminhando pela cidade, contemplando sua beleza, seguiu pela avenida principal despreocupadamente, sentia-se feliz por ver as pessoas em suas janelas conversando, cumprimentando os transeuntes, aqueles gestos o estavam dando uma imensa paz interior, uma paz que tinha perdido havia muitos anos.



Circulou a praça da matriz, ficou de frente para a igreja que tinha uma torre alta, pintura em tons azul e branco na frente com as laterais em rosa, em volta muitas barraquinhas, um parque de diversões e alegria por todos os cantos. Era dia da padroeira e todos aguardavam ansiosos pela queima de fogos...


Concentrou-se no interior da igreja, precisamente no altar onde a santa parecia olhar compadecida para ele, aproximou-se, ajoelhou-se, fez o sinal da cruz e ficou ali, de joelhos, apenas olhando sem pensar ou dizer palavra, parecia que a santa acarinhava sua cabeça como aquela mãe zelosa que um dia conheceu e que há muito não reside neste mundo.


Quando deu por si estava chorando em soluços, agarrado ao próprio corpo como se estivesse consolando a si próprio, não sei exatamente quanto tempo ficou assim, só sei que ele da igreja só saiu quando o espocar dos fogos começou e o alarido da multidão em êxtase o despertou. Foi para a porta e se viu como uma criança olhando os rojões subindo e estourando numa sincronia muito bem planejada e executada.


Terminada a festa, as pessoas recolheram-se a seus lares, as ruas vazias com um ou outro cidadão ainda teimando em tomar a última dose, passavam cambaleantes sem tomar conhecimento de sua presença. Pegou sua mochila, esticou-se num dos bancos da praça e dormiu como se num colchão de espuma estivesse, coberto e protegido por aquele lindo céu reriutabense...


Acordou já era dia com o barulho da feira, os pregoeiros vendendo suas mercadorias e a freguesia pechinchando melhor preço, carrinhos de compras, uma mistura de cheiros que não se distinguia o quê era de quê. Ora era maçã, ora peixe, ora abacaxi, ora tudo misturado, coisas de feira. Levantou esticando o corpo num espreguiçamento de rei, foi até o chafariz, lavou o rosto e foi para feira.


Já com uma fruta nas mãos para o desjejum saiu perambulando pelas barracas como se soubesse bem o que queria, de repente um estampido de tiro, as pessoas correndo, um corpo no chão. Correu para socorrer, uns homens o tentaram impedir dizendo que a vítima já estava morta, no que ele retrucou: _sou médico, se estiver vivo talvez possa salva-lo.


O corpo estava de bruços e era por demais pesado, pediu ajuda e virou-o de barriga para cima e quase não acreditou no que tinha visto. Era Luiz Alfredo, o homem pelo qual procurava a mais de vinte e cinco anos para o ajuste de contas estava morto em seus braços, e o pior, sem que ele tivesse movido uma palha para que isso acontecesse, sentou-se no chão desanimado, olhou para a igreja como quem estivesse recebido um injusto castigo, olhou para os céus e soltou um grito de dor tão desesperado que as pessoas em volta pensavam se tratar de um parente.


Trouxeram-lhe água e o abanaram com jornais para que respirasse melhor, ao ser perguntado se conhecia o defunto respondeu com a cabeça afirmativamente, as lágrimas de ódio e inconformismo não o deixavam esboçar palavra. Quando finalmente pode falar alguma coisa perguntou quem e por que havia feito aquilo, ninguém respondeu, disseram que o homem era trabalhador e tinha barraca de carnes naquela feira a mais de vinte anos, era casado e tinha duas filhas moças, além disso nada mais sabiam.


Cidade pequena tudo se vê, tudo se sabe, nada se comenta. O pobre capitão ficou ali desolado sem saber o que fazer dali por diante, uma vez que tinha dedicado todos os seus minutos na procura incessante pelo infeliz que o deformara, agora o encontra ali, inerte como uma pedra...


>>> Continua na próxima quarta-feira...


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Paulinho Freitas é sambista, compositor e escritor.





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