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'Para que a vida nos dê flor'

Por Paulinho Freitas


SÃO GONÇALO DE AFETOS



Foto: Pixabay
Foto: Pixabay

Nessas minhas andanças pelas entranhas de São Gonçalo, observo que não somos a mesma cidade. Cada canto tem um jeito diferente, São Gonçalo é como um pequeno país e suas federações. Até o sotaque muda de um lugar para o outro. O corte de cabelo é diferente, a maioria descolorido. O jeito de vestir é diferente e até o jeito de andar é diferente.  


Ali, naquela localidade as coisas acontecem, também diferente das outras. Para perceber isso é necessário andar pelos bairros e prestar bem atenção nas pessoas e seus comportamentos.


A única coisa que não muda são as crianças. Essas, em qualquer lugar do mundo são iguais, sinceras, curiosas, corajosas, alegres, carinhosas... Criança é tudo de bom. Disse que são todas iguais. Sim, nascem iguais, mas são como sementes de vida e dependendo do tipo de solo onde são plantadas e dependendo do adubo que as alimenta, darão flores e frutos diferentes. 


O bairro que fui esta semana foi abençoado por Deus. Lá tem mar, tem mangue e tem mata. Uma paisagem única e privilegiada. Só que, amaldiçoada pelo homem. 



Tem um lugar lá que é uma espécie de praça com uma enorme árvore frutífera no meio, que faz uma grande sombra onde alguns tecem redes de pesca, outros sentam em círculos e contam histórias,  como griots africanos passando ensinamentos para os mais novos. Outros amigos, ainda, se deixam ficar ali, curtindo a praça, tirando um cochilo ou só se deixando fazer parte da paisagem.


Nesse dia aquela paz foi quebrada pelo barulho de muitos tiros dentro da mata. Não se sabe de onde surgiram várias viaturas da polícia, um caveirão e até um helicóptero dando rasantes apareceu. Os moradores que estavam em baixo da árvore, todos deitaram no chão com as mãos protegendo suas cabeças. Quando o barulho cessou, de dentro da mata saem vários policiais trazendo um jovem homem, ferido e enfurecido. Embora com um tiro na perna fazia de tudo para se desvencilhar dos policiais que tentavam imobilizá-lo. Parecia um animal, grunhia, se debatia, tentava morder os policiais, não se deixava abater. 


Aquele jovem morava na mata, raramente saía de lá. Seu linguajar é parco, quase um dialeto. É, junto com outros iguais, a retaguarda do tráfico de drogas que atua no local. Se o inimigo vier pela mata terá que passar por ele e seus companheiros, todos como ele, nascidos do tráfico, na mata, sobreviventes da barbárie social que o crime impõe e o poder público, assim como a justiça, não tem óculos para enxergar aquela gente. Ele nunca veio ao centro da cidade, só sabe que existe por ouvir falar. Não sabe ler, escrever e nunca amou ninguém. As mulheres que conhece são trazidas pelos “chefes”, uma vez por semana para acalmar os nervos. Nem nos bailes de comunidade ele e sua turma podem ir. 


Depois de muita luta conseguiram colocar o rapaz na caçapa de um camburão todo enferrujado e caindo aos pedaços e este saiu em disparada pela empoeirada estrada. O rapaz gritava e batida nas paredes do veículo feito um animal enjaulado. O que será daquela alma meu Deus? 


De volta ao centro da cidade, ali na frente de um local que chamam de Casa das Artes, mas o único quadro que vejo todos os dias, são os miseráveis moradores de rua e usuários de drogas que usam aquela calçada para dormir e usar entorpecentes, vejo uma criança de uns nove, talvez dez anos, segura pelos braços por dois policiais. O menino acabara de furtar um celular e tentava fugir. Apesar de pequeno e frágil, ele, como o jovem que vi lá na periferia era violento e difícil de conter. Xingava os policiais, jurava matar a vítima assim que se libertasse e jurou de morte também os policiais, o garoto parecia possuído. Por muito custo, um conselheiro tutelar conseguiu acalmá-lo e ele foi encaminhado para o juizado de menores para que fosse assistido. 


Aquele menino, só mudou de jardim. O terreno em que foi plantado e o adubo que o alimenta são os mesmos que recebeu o jovem do início da história. Infelizmente o destino dele foi traçado, não na maternidade, mas na concepção. 


As eleições estão aí e logo, logo a musica de Milton Nascimento e Wagner Tiso passará tocando num carro de som, bem na porta de nossa casa:  “... Há que se cuidar do broto...”. 


Ah meu São Gonçalo, protegei os filhos de sua terra! 

 

Obs: Qualquer semelhança com nomes e fatos, é mera coincidência. 


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Paulinho Freitas é sambista, compositor e escritor.

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