O Guaxinim devoto do Mangue da Caieira, por Erick Bernardes
- Jornal Daki

- 20 de dez. de 2020
- 3 min de leitura

Tinguá sentiu falta do senhor Doti tão logo se completaram os 30 minutos de espera, conforme o combinado antes de retornarem da labuta. Sim, exatamente, meia hora para buscar as cambadas ou amarrados de caranguejos capturados no mangue e deixados no canto da árvore, quando os trinta minutos de espera já deveriam ser suficientes. Os amigos estavam cansados. Horas sem conta debaixo do sol em meio à lama cavoucando o sedimento encharcado, no intuito de encontrar os crustáceos que os fariam comprar o pão. "Não demora muito, vai logo, companheiro, pega rápido os amarrados e bora pra casa". Mas não, caro leitor, nessa espera de final do dia o velho Doti não voltava. Ao contrário, o caranguejeiro idoso nem dava sinal de vida.
— E aí, Tinguá, como você achou o seu amigo, teve receio que algo pior houvesse acontecido com ele?
— Claro, pensa só, eu, que nem alcancei ainda minhas 50 primaveras, vez ou outra, tenho daquelas crises de pressão alta, imagine meu parceiro de trabalho que é um senhor fumante com quase seus oitenta anos? Naquela época, ele passava das 7 décadas de idade, já capengava pra descer do barco. Lógico que bateu sensação estranha. E se Doti tivesse morrido em algum canto da beira do rio! Graças a Deus, não aconteceu morte alguma. O que se teve foi uma revelação do alto. Um aviso de Deus, papai do céu avisando que a natureza merece respeito.

Bem, caro leitor, necessário admitir, assim como você, eu também embarquei na curiosidade. Claro, impossível não buscar logo o desfecho do caso. No Mangue da Caieira, na Ilha de Itaoca, a natureza viva ofereceu lição lindíssima aos dois catadores de uçás. O caso é que Doti percebeu que os amarrados de caranguejos haviam desaparecido. Eram duas cambadas enormes, difíceis até de carregar, pesadas ao extremo. Quem haveria furtado o resultado de um dia inteiro de trabalho árduo? Pois é, o personagem idoso também se perguntou; se embrenhou no sedimento alagadiço com vistas a encontrar o ladrão. E achou, sim, incrível, jamais poderia imaginar coisa semelhante. Após seguir as pegadas e marcas de arrastos de objetos no lamaçal, em busca de quem furtou os tais caranguejos, o tal senhor se deparou com uma espécie de guaxinim, tipo de animal nativo, capaz de carregar objetos pesadíssimos por causa dos seus músculos firmes e desenvolvidos. Verdade, animalzinho fofo, bonitinho, pequeno, porém, possui força descomunal em sua natureza, principalmente se o furto tiver por objetivo alimentar a prole de guaxininzinhos, conforme aconteceu. Exatamente, tratava-se de uma fêmea com dois filhotinhos recém-nascidos.
— Caramba, Tinguá, deve ter sido de dar dó a visão que seu amigo teve dos animais pequenos ao lado da mãe ladra, aguardando a refeição complementar do leite materno. Nem sabia que esses bichos comiam crustáceos. Que coisa!
— Pior não é isso, Erick, o choque de realidade maior se deu antes de Doti saber que haviam filhotes. Até o momento, ele só percebeu o animal acuado no buraco na rocha e assustado. Somente quando ia desferir o golpe de foice, visando a tirar a vida do Guaxinim, é que o bicho juntou as mãozinhas e virou o rosto para o lado, mostrando com o focinho o casal de filhos recém-nascidos. Juro. Os caranguejos não eram de maneira alguma para os filhotes. Claro que não. Eram suprimentos para a mamãe guaxinim poder passar longos dias escondida e amamentando sua prole. Incrível, coitada da bichinha, constituía refeição para ela aguentar a vida reclusa e de doação. Pode-se até dizer: no momento exato em que juntou as mãos, a fêmea de guaxinim encurralada clamou por piedade. É como se implorasse por clemência ao seu algoz. Pelo amor de Deus, ela precisava viver mais por causa dos seus filhotes do que por ela mesma.
E assim, simples assim, a natureza ofertou a lição mais linda que puderam aprender. O senhor Doti, amigo do Tinguá, nunca mais desejou abater por vingança animais da fauna gonçalense. Se não fosse para alimentação própria, a dupla de catadores nem encostaria a mão em ser vivo algum. E choraram, choraram muito naquele dia, porque viram o poder divino ali representado, na família de Guaxinins, no Mangue da Caieira.
Nota do autor: o guaxinim é um animal carnívoro, da família dos Procionídeos, também chamado de mão-pelada. Parente do quati, mas um pouco maior, mede cerca de um metro. Se alimenta de peixes, rãs, insetos e frutas. Foi muito caçado, pois costuma atacar animais domésticos em fazendas e assim sua população diminuiu bastante. (Fonte: dicionarioinformal.com.br)

Erick Bernardes é escritor e professor mestre em Estudos Literários.















































































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