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'...Quem não arrisca...'

Por Paulinho Freitas


SÃO GONÇALO DE AFETOS


Foto: Reprodução vídeo
Foto: Reprodução vídeo

Os ventos do outono já bafejavam refrescantes as últimas tardes iluminadas de mais um quentíssimo verão e Félix ainda sonhava com o carnaval. Na manhã de domingo de carnaval, como o faz todos os anos, foi à Av. Presidente Vargas ver os carros alegóricos das escolas que desfilariam naquela noite. Adorava carnaval e o desfile das escolas de samba, mas a magra aposentadoria mal dava para os remédios, que dirá compra ingressos.


Assim mesmo gostava de ver o povo brincando, as fantasias, as belas mulheres que nessa época surgem como se viessem de outro planeta. Durante o ano você não encontra com essas musas por aí. É só no carnaval que elas aparecem.


As alegorias eram lindíssimas, não dava para dizer qual delas estava mais exuberante. Este desfile tinha tudo para ser o maior da história de carnaval. Depois de andar pelo centro do Rio até o início da tarde, Félix volta para São Gonçalo feliz como uma criança, ainda arriscou uns passinhos num dos muitos blocos desfilantes naquela manhã. Feliz pelo simples fato de existir e poder ver tanta beleza, tanta alegria.



Desce do ônibus no bairro Paraíso, caminha assobiando um antigo samba enredo, talvez se imaginando num desfile pra lá de garboso, de terno e chapéu fazendo firulas com as pernas tortas que Deus lhe deu e lhe renderam grandes momentos no futebol lá no Campo do Saíra, no Gradim. Entrou pela Rua Paul Leroux e antes da primeira esquina viu um cachorrinho correndo e sua dona atrás tentando pegá-lo, sem sucesso. Félix cercou o animalzinho e o conseguiu pegar, entregando a sua dona que esbaforida agradeceu. Os dois foram cada um para um lado, mas ambos com a certeza de que se conheciam...


À noite, antes de começarem as transmissões dos desfiles das escolas de samba, Félix sentou num barzinho para saborear uma cerveja, abrindo os trabalhos carnavalescos. O bar estava vazio e Félix contemplava aquele céu que só São Gonçalo do Amarantes tem e só quem mora em São Gonçalo do Amarantes entende e conhece cada estrela, cada pedacinho desse lugar de inspiração e sonhos.


Os carnavais passados foram vindo à sua mente e ele sorria ao ver passar na sua frente os blocos de arrastão da época. Eram dezenas, mas ele era apaixonado pelo Unidos do Marimbondo. Quando o bloco passava, não havia quem não aplaudisse. Foi aí que lembrou de Gilsa, linda, com um requebrado que em tempo algum foi visto igual. Félix era só paixão e desejo, olhava aquela mulher, a imaginava em seus braços, faria não uma, mas um milhão de poesias, um milhão de sambas, trabalharia dias e noites à fio para satisfazer seus caprichos, a trataria não como uma rainha, mas como a dona do mundo inteiro, lhe daria todos os reinos e todos os castelos possíveis.


Era amor pra vida toda e mais as que viessem depois dessa. Gilsa o olhava e baixava os olhos. Depois que o bloco passava ele ainda ia atrás para declarar-se, iniciar um namoro e leva-la ao altar. Pobre Félix, não tinha coragem, numa época em que o racismo era explícito e ele preto, não teria nenhuma chance com aquela de pele clara feito a luz daquela lua que agora fazia brilhar as pedrinhas da rua, que em sua imaginação era um tapete de estrelas para sua amada passar.


Terminou a cerveja, sacudiu a cabeça para espantar as frustrações e foi para casa ver os desfiles pela televisão. Fez um café, tomou e deitou-se na sala à frente da televisão. Não viu nem metade da primeira escola e já adormecia com uma lágrima rolando em seu rosto.


Gilsa, que há muito não mora em São Gonçalo e veio visitar a filha estava deitada, olhando o céu pela janela. Nos seus pensamentos o carnaval também era o personagem principal. Via nitidamente Félix a olhando com cobiça, mas muito tímida não tinha coragem de encará-lo e baixava os olhos quando os dele encontravam. Ficava esperando que ele a viesse cortejar, mas ele ficava de longe. Esperou por ele por vários carnavais e como não aconteceu, a vida seguiu seu rumo. Aquele encontro trouxe lembranças, reascendeu desejos e reabriu feridas, mas o tempo cura tudo, não apaga lembranças, mas ameniza as dores e o sofrimento.  


Fosse ele mais impetuoso e ela menos pudenda, seria mais uma bela história de amor a ser contada aos filhos e netos, poderia até virar um belo romance a ser escrito. A noite seguiu silenciosa em ambos os corações. Lá no bar vazio, o dono guardava as mesas e cadeiras e na máquina de música Gonzaguinha resumia o desejo dos dois: “...BATIDAS NA PORTA DA FRENTE, É O TEMPO...”


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Paulinho Freitas é sambista, compositor e escritor.


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