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Sérgio - por Paulinho Freitas

SÃO GONÇALO DE AFETOS


Foto: Pixabay
Foto: Pixabay

Sérgio é andarilho. Hoje está aqui, dormindo na Praça Chico Mendes num sol de meio dia como se estivesse numa rede, confortavelmente deitado bebendo uma água de coco numa praia de veraneio. Amanhã pode estar em qualquer lugar. Sérgio não sente calor, não sente frio, não vê beleza em nada. Só aparece na realidade quando está com fome ou com sede, se alimenta do que aparecer, de uma quentinha dada por um passante penalizado por sua situação a um salgado achado revirando latas de lixo e bebe até água empoçada. Sérgio não quer saber de vida. Não quer mais viver, mas é temente a Deus e sabe que se tirar a própria vida vai pagar muito caro na “outra vida”.


Sérgio é homem da roça e desde muito cedo aprendeu a plantar, roçar, capinar, criar animais de todo tipo e qualidade e amar a natureza. Sabe o nome do passarinho ao ouvi-lo cantar, mesmo tão longe que ninguém preste atenção, mas ele ouve e sorri, assobia respondendo e a mente viaja por sua pouca história.


Nasceu e foi criado na serra, pai e mãe desconhecidos, pulou de fazenda em fazenda, de sítio em sítio até se tornar homem. Do mundo viu muito pouco, foi na cidade apenas para carregar as rações que os patrões compravam para os animais, nunca viu televisão, nunca foi ao cinema. Namorou uma única vez, quando o patrão fez uma festa com os amigos, contratou garotas e garotos de programa, foi um final de semana inteiro de orgia.



Sérgio era bonito, tinha cabelos encaracolados e era forte como um touro. Não bebia e não fumava, era um bicho do mato e ficou escondido vendo as coisas acontecerem se masturbando atrás das moitas até que uma das meninas o descobriu ali e o agarrou por trás lascando-lhe um beijo, que a princípio, ele assustado até tentou reagir, mas nessas horas o cara fica sem forças e ele se entregou completamente. Disse-me ele, num raro momento entre a lucidez e o sonho que esta mulher ficou com ele, vivendo na roça, em sua humilde casa, teve dois filhos com esta mulher e logo que o segundo filho nasceu ela foi embora. O amor não resiste à falta de dinheiro e perspectiva. Nunca mais a viu e não sabe dos filhos.


O filho mais novo do patrão era homossexual, ninguém da família desconfiava, ele passava a maior parte do tempo no pasto com Sérgio aprendendo a montar e a tanger o gado. Numa tarde chuvosa o patrão surpreendeu o filho e Sérgio na hora do ato sexual. O rapaz ao ver o pai começou a se debater gritando por socorro dizendo que Sérgio o queria estuprar. A confusão estava armada e não adiantava querer se defender. O pai, os irmãos e os outros empregados avançaram em cima de Sérgio para linchá-lo. Ele muito forte e esguio conseguiu entrar na mata que conhecia como ninguém e foi se embrenhando serra abaixo desaparecendo do lugar para sempre.


Sérgio andou de cidade em cidade anos a fio, hoje, o peso da idade o impede de longas caminhadas, não tem documentos, não sabe mais seu nome inteiro, nem a data de nascimento, nem quem é. As pessoas passam e tapam o nariz para não sentir seu cheiro embora ele não tenha cheiro ruim, pois toma banho todos os dias e sempre ganha roupas limpas para trocar. Sentado ao lado de Sérgio vejo passar dois amigos que não me notam, ao lado de Sérgio, o invisível, eu também o sou. É triste constatar, mas é a pura verdade.


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Paulinho Freitas é sambista, compositor e escritor.



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