É legal ser negão - por Paulinho Freitas
- Jornal Daki
- 5 de out. de 2022
- 3 min de leitura
SÃO GONÇALO DE AFETOS
São Gonçalo é dividido em bairros e sub-bairros, todos uma pequena cidade dentro desta imensa metrópole. Numa das comunidades mais pobres, apesar da proximidade com o centro metropolitano, falta de um tudo, a carência é muito grande. Mas, mesmo lá há a divisão de classes. Alguns possuem um pouco menos de dificuldade do que os outros, mas em regra geral todos miseráveis.
Neste cenário Porfírio e Heitor foram criados, sempre juntos em qualquer que fosse a situação. Se um arranjasse uma confusão o outro comprava a briga e vice versa. Quando jovens, nas noitadas, um só namorava se o outro também se arrumasse. Os dois eram unha e carne até 2018 quando um se tornou eleitor de direita e o outro de esquerda.
De lá para cá, aquela amizade que era de irmãos se tornou apenas um cumprimentar educado e agora, no final do período pré-eleitoral se transformou em uma mortal inimizade.
Parecia que os dois eram daquelas famílias de antigamente lá no interior onde uma família queria exterminar a outra. No final da apuração o candidato de direita à câmara dos deputados foi eleito e uma grande festa numa enorme casa afastada do centro da cidade foi realizada para as comemorações.
O amigo de direita, depois de pegar dois ônibus e andar meio quilômetro a pé conseguiu chegar à festa e se dirigiu a entrada, garboso e orgulhoso, com a camisa do candidato e um largo sorriso de felicidade que foi se apagando a medida em que os seguranças o afastavam da portaria explicando que a festa era restrita a convidados e o nome dele não constava na lista, além disso o agora deputado estava muito ocupado com os convidados e não o poderia atender.
Desiludido, com vontade de fazer da terra uma grande bola de basquete e atirá-la no buraco negro do universo voltou ele para sua pobre comunidade. Logo na entrada o velho amigo, agora inimigo mortal, bebia uma cerveja afogando as mágoas por ter seu candidato perdido as eleições e foi só um rápido olhar um para o outro que uma luta feroz foi travada, briga de titãs, dado o tamanho e força dos oponentes. Ninguém teve coragem de entrar para apartar.
Depois de muito lutarem o amigo que torcia para o candidato da direita quebrou uma garrafa e enfiou as pontas na barriga do que torcia para o candidato de esquerda que caiu esvaindo em sangue. O agressor fugiu desesperado enquanto o ex-amigo era socorrido por populares.
Até o final da semana um terá alta no pronto socorro central de São Gonçalo e o outro responderá por lesão corporal e tentativa de homicídio estando já na penitenciária depois de uma rápida audiência de custódia onde a única coisa que pode falar foram seus dados pessoais.
Lá, naquele casarão, uma grande reunião, agora para alinhavar caminhos políticos estava acontecendo entre o candidato de esquerda e o candidato de direita, agora juntos para tentar formar uma grande frente partidária para eleger o próximo prefeito da cidade.
Os seguranças pretos e pobres continuam no portão impedindo a entrada de eleitores pretos e pobres. A amizade de anos dos amigos pretos e pobres está tão morta quanto o respeito entre pretos e pobres, entre os seres humanos.
É muito legal ser negão. No Senegal!
E, que venha o segundo turno!
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Paulinho Freitas é sambista, compositor e escritor.
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