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O homem seco da Vala do Bento, por Erick Bernardes


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Foram incontáveis anos na cata do caranguejo, lá pelos lados de Itaoca. Ganhou a vida, criou filhos e agora relembra deitado na rede, logo após do mocotó amigo degustado no copo e acompanhado daquela cachacinha de sempre: “É mocotó do bom”, informou Tinguá.

E por falar em mocotó amigo, foi exatamente sobre o amigo do nosso narrador que o caso aconteceu. Trata-se do mistério do velho Milton, senhor pesado e redondo, cujas nove arrobas e meia jamais interferiram no seu caminhar por sobre a lama do manguezal. Pois é, embora todos catadores que buscassem atravessar o profundo canal apelidado de Vala do Bento ficassem ensopados de água salgada, algo sinistro acontecia com esse senhor incomum.


— Sim, Milton, pai de Aílton e Delminho, morador do Guaxe, ali mesmo na rua do centro da Ilha de Itaoca. Ele costumava atravessar a Vala do Bento. Aliás, nós todos andávamos pelo referido lugar pra chegar até ao mangue. Molhávamos pés, pernas e cintura, lógico, impossível não encharcar. Água de sal, lama, muito natural toda aquela molhadeira de sedimento. Mas quem disse que o velho Milton se molhava? Juro, nem um pingo sequer caía na roupa do coroa. Ele ria de franzir o cenho. Um brilho diferente no olhar. Sorriso sonso ne canto de boca. Incomodou-se quando questionei falando de coisas sobrenaturais:


— Seu Milton, o senhor tem pacto com o demo? Vixi, Maria, como consegue chegar aqui sem um pingo de água da maré besuntando a perna?


No entanto, nada revelava o tal segredo. Será que ele voava? Caberia pensar em algum tipo de teletransporte do além? Não sei, confesso mais uma daquelas minhas incapacidades cognitivas.


— Mas, Tinguá, vocês não vigiavam o velho atravessar pra ver o que ocorria?


— Sim, claro, Erick, entretanto, o Sr. Milton sumia e aparecia de novo com ares de deboche, enquanto eu e meus irmãos olhávamos um para o outro espantados. Sumia só não, aparecia do nada atrás de uma árvore pra participar de conversas. Ou de repente marcava presença numa roda de samba familiar sem nem ter sido convidado.


Pois é, caro leitor, e se você acha que o coroa morreu... só que não, morreu nada, encontra-se vivinho da Silva lá para os lados de Itaoca. Parece até uma coisa: só de falar no nome do sacana o mato mexeu perto de mim, e Tinguá logo se benzeu.

Cruz Credo, Deus me livre!

Erick Bernardes é escritor, professor mestre em Estudos Literários.



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