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Paquestade - por Erick Bernardes


Foto: Erdal Yazici, 1989
Foto: Erdal Yazici, 1989

O que mais me incomoda na vida é ser punido por algo que nem sei bem o motivo. Isso mesmo, desgosta meu espírito, só de lembrar a gratuidade da punição fico irritado. Injustiça: levar palmadas sem ter ciência das causas. Necessário admitir, profundamente incomodado.


Quando eu era menino, por volta dos sete anos de idade, um garoto pobre chamou ao portão e perguntou se tínhamos pão duro ou algo qualquer para alimentar seus irmãos menores. Meu pai mandou que eu desse um saco das bisnagas dormidas que se encontrava em cima da mesa. Exatamente, esmolas em forma de pão, sentia-se mais cristão assim o papai.


_ As bisnagas, meu filho, leve ao garoto e deseje um bom dia.


Bem, o caso é que eu não desejei o tal bom dia ao menino pobre. De jeito nenhum, não desejei, infelizmente. Se tivesse feito, decerto não teria esse assunto mal resolvido agoniando dentro de mim ainda hoje.



O fato é que ao entregar as bisnagas dormidas ao garoto pedinte junto ao portão, o cumprimento de bom dia não aconteceu, fiz diferente. Sim, mudei de atitude, ou melhor, não segui as recomendações do papai.


_ Aqui estão os pães, seu paquestade.


Um tom agressivo saído de mim à toa. Confesso que essa palavra, a princípio ofensiva, apareceu do nada na minha cabeça e tive euforia em dizer. Seria eu uma criança má? Incrível vocábulo: paquestade. Mas o que isso significava? Meu pai ouviu de longe e me chamou com chinelo grosso na mão. Paquestade. Decerto meu genitor não se agradara da ofensa.


_ Meu filho, não agrida as pessoas com palavras. Jamais faça isso de novo.


Não, caro leitor, a ira de papai não ficou só nas palavras. Jamais tamanha ofensa contaria com pena tão leve, obviamente apanhei. Sim, punição grave. Chineladas para todos os lados me fizeram avermelhar a pele dos braços, das pernas, do pescoço também. Paquestade, palavra inesquecível.


Mamãe me chamou no cantinho. Falou com voz suave:


_ Olhe, nunca ofenda as pessoas pobres, elas são vítimas da sociedade e merecem respeito.


Claro que eles tinham razão, ofensa ao pobre magoa o ofendido por dentro. Eu aprendi a lição. Imagine o que ficou gravado na memória daquela criança com fome chamando ao portão? Porém, um dado importante: o que significava aquilo, quer dizer, qual a definição da palavra paquestade? Eu cresci, hoje sou (por ironia da vida) professor de língua portuguesa. O caso me veio à mente, lembrei dessa situação de infância. Deu-me vontade de ir ao dicionário consultar o vocábulo. Sim, paquestade, hora da verdade. Necessário conhecer a causa do trauma deixado pelas chinelas do papai. Mas foi em vão, inútil consulta ao Aurélio impresso, tampouco o Google me supriu de informação. O que será isto chamado paquestade?


Enfim, caros leitores, para abreviar essa conversa. Meu pai e minha mãe não sabiam o significado da palavra. O garoto pobre também não entendia o adjetivo. Contudo, eu o chamei assim, ofendi o coitado. E ninguém: nem eu nem você saberemos algum dia o que é ser um paquestade.


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Erick Bernardes é escritor e professor mestre em Estudos Literários.


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