Por linhas tortas

SÃO GONÇALO DE AFETOS

Por Paulinho Freitas

Reprodução

Num passeio pelo centro da cidade encontro um amigo de infância, o China. Papo vai, papo vem, ele me conta que teve dois filhos, comprou uma casa no Jardim Catarina e estava vivendo tranquilo, até a vida da comunidade entrar na sua vida. Num lugar onde o poder público é inoperante, assim como em várias localidades do estado, não foi difícil para o tráfico local recrutar seus dois filhos. Os meninos sumiam de casa por dias a fio. Ele me disse que cansou de perambular de madrugada a procura dos dois. Os meninos viraram a cabeça de tal forma que já não o reconheciam como pai, chegaram ao cúmulo de esconder comparsas dentro de casa para a polícia não pegar. China pedia a Deus, implorava a todos os santos, até de joelhos subiu a ladeira da igreja de N.Sra. das Graças tentando um milagre. Ele temia perder os dois de uma só vez numa entrada do caveirão no bairro. 

O que China mais temia acabou acontecendo. Numa troca de tiros, o filho mais novo foi baleado e ficou paraplégico. O que ele sabe é que o menino entrou na frente do irmão para protegê-lo e foi atingido. Nesse momento China caiu em prantos. Abracei meu amigo e deixei-o desabafar. Nessas horas, nenhuma palavra é mais forte que um ombro amigo. 

Quando ele melhorou, me pediu desculpas pelo descontrole. Fiquei calado, senti que ele queria falar, deixei. 

Depois que o menino voltou para casa numa cadeira de rodas, o irmão mudou totalmente o comportamento. Passou a frequentar uma igreja evangélica, mas por entrar em conflito de ideias com o pastor, passou ele mesmo a fazer pregações pela rua. China me disse que o garoto fala a língua das pessoas invisíveis, aquelas que moram onde só Deus pode entrar para lhes dar um pouco de esperança. Num domingo ele levou o irmão para suas andanças cristãs, China foi atrás, sem ser percebido e viu o filho pregando. Sem microfone, sem igreja e sem banco o garoto já contava com muitos ouvintes. Falando alto, mas sem gritar ele pregava: 

_Irmões! Hoje vô dá o papo reto do que Deus fez com Jonas. Então tropa, Deus falou pá Jonas ir pá cidade de Nínive porque já tava batendo neurose lá já. Jonas, invés de fazer o que o Deus mandou, pegou o beco mané. Foi pá Jope, comprou uma passage de navio e foi pa Társis, dando uma volta no senhor. Hum! Pensou que era assim, sair saindo? É ruim hein! Tropa, Deus mandou uma tempestade da braba, todo mundo sabia que ia morre, mas Jonas sabia que a parada era com ele. Pa num lombrá a parada, ele pulou na água, só que aí vei um pexe grandão e engoliu Jonas. Tropa, o pexe vomitou Jonas onde? Lá em Társis, onde Deus tinha mandado ele pregá. Ele não precisou dizê nada. Quando o povo de lá viu ele sair vivo da boca do peixe, ajoelharo e aceitaro a palavra. Então tropa, não adianta corrê, Deus mandô se ligar na palavra Dele. Se liga tropa! Num faz qui nem eu. Só Depois que Deus pesou a mão em cima de mim é que eu fui entender. Aceita em quanto é tempo, amém! 

E o povo todo: Amém! 

China, ao terminar de falar era outro homem, parecia ter em seu rosto uma mistura de alívio, orgulho e felicidade. Ele precisava falar aquilo para alguém. Disse que o garoto já conseguiu um pequeno terreno na parte mais isolada do bairro, difícil acesso, mas já está construindo uma pequena igreja e já conta com fiéis vindos até do tráfico. Me deu um apertado abraço, não sem antes pegar o número de meu telefone, quer que eu vá fazer uma visita a igreja do filho. Prometi ir. 

Vi um vídeo por esses dias de um rapaz pregando da mesma forma. O cara é muito bom de convencer. Tomara que ele tenha sucesso nessa empreitada e consiga pôr os amigos de joelhos, orando, antes que sentem numa cadeira de rodas, chorando, ou coisa pior. 

Glórias a Deus! 

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Paulinho Freitas é sambista, compositor e escritor