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Jovina - por Paulinho Freitas

SÃO GONÇALO DE AFETOS


Foto: Pixabay
Foto: Pixabay

Na década de 1970, Itaboraí era amarelinha de tantos pomares de laranjas e tangerinas. A expansão imobiliária começava a ferver e era moda ter um sítio para passar os finais de semana. Lá também era onde os ex-escravizados viviam em grandes famílias, em situação de pobreza quase que extrema. Era comum as famílias da cidade, irem a estas localidades e levarem meninas de dez a quinze anos para criarem como “filhas”.


Quando o carro de Dr. Cardoso Silva chegava a pequena chácara, as crianças corriam atrás, ávidas por doces e balas que certamente estavam no porta-malas. Enquanto Dr. Cardoso Silva e sua esposa, dona Carminda conversavam na varanda, seus filhos, Thais e Rômulo se fartavam de correr pelos pomares pegando frutas, subindo e descendo em árvores, coisas que na cidade era difícil acontecerem por morarem em apartamento. Em dado momento Jovina, uma das crianças daquela casa foi chamada, dona Carminda abraçou a criança e falou:


_ Você vai comigo pro Rio de Janeiro. Vai ser minha filhinha querida e morar comigo. Você quer?


Os olhos da criança brilharam, a mente já viajou por bonecas de porcelana, um quarto com roupa de cama quentinha, ir para o colégio, se vestir igual as moças das novelas, quem sabe ser uma artista? Ela simplesmente deixou a cabeça se aconchegar no colo de dona Carminda que a acariciava. Num estalar de dedos uma pequena trouxa de roupas surradas foi posta no porta-malas e o carro partiu com Jovina no banco de trás olhando seus irmãos correndo atrás do carro, atrás do sonho de ter a sorte de Jovina e um dia também irem morar no Rio de Janeiro.



A viagem foi um misto de felicidade, apreensão e tristeza pela separação da família, mas um dia voltaria para buscá-los, formada em medicina como Dr. Cardoso Silva e com seu próprio carro. Assim, sonhando, respirando o ar do mar enorme que nunca tinha sonhado em ver, atravessado por uma barcaça cheia de carros, caminhões e ônibus adormeceu.


Ao contrário do que sonhou, Jovina passou a vida cuidando das roupas, da limpeza da casa e da alimentação da família. Acordava antes do sol nascer e dormia depois do último integrante da família se deitar. Nunca foi à escola, na única festa de aniversário que teve por ocasião da visita de Padre Eustáquio e só para demonstrar o quanto eram bons para Jovina, que ficou muito feliz por ver a família toda cantando o parabéns pra você, mesmo sendo a última a comer um pedaço do bolo do próprio aniversário e assim mesmo após lavar toda a louça e limpar toda a casa.


Naquela noite ela dormiu sorrindo. Nunca mais teve outra festa, nem sabia o dia real de seu aniversário. Brincava sozinha com uma boneca que a “irmã de criação” não queria mais, fez da boneca confidente e contava a ela todos os sonhos. Nos natais sempre ganhava o mesmo presente, um vestido de botões em xadrez amarelo e branco com dois bolsinhos na frente e uma touca da mesma cor. Passou a vida sem ter outra roupa que não fosse este uniforme, sapatos fechados e meias até os joelhos. Via a vida através das grades do portão, criou os “irmãos de criação“ e os filhos destes, como os pais, já mandam Jovina catar os brinquedos que espalham e cospem no rosto dela a comida que não gostam.


A paciência de Jovina, ou não tem limites, ou ela, como um animalzinho de estimação, já se acostumou com o espaço que deve ocupar numa sociedade onde se você não acorda pra vida, a vida dorme pra você.


As Jovinas estão aí, de vez em quando sendo descobertas por algum repórter e virando capa dos principais noticiários da TV, tirando lágrimas de um público que a esquece assim que tem início a novela das nove.


Ser humano, bah!


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Paulinho Freitas é sambista, compositor e escritor.



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