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São Gonçalo e suas riquezas culturais invisibilizadas

Por Verônica Inaciola

Foto: Renan Oto
Foto: Renan Oto

O bem mais precioso de um povo é a sua cultura! Essa frase pode até parecer clichê para os que a veem como algo desvinculado da sua vida, assim como que se a sua existência não estivesse relacionada aos costumes e hábitos da sua família e do seu território; no entanto para nós que já nos sensibilizamos a respeito da sua importância para a nossa sobrevivência, também, psíquica, não duvidamos do poder dos seus símbolos (pois não existe cultura sem símbolos) e eles servem para interpretarmos o mundo e as relações de reciprocidades entre as pessoas.

Essa introdução foi para nos situarmos nas interlocuções desse campo tão complexo que é o Patrimônio Cultural Imaterial (PCI), e que em São Gonçalo não é diferente de outro lugar no Brasil, compreendendo uma riqueza de símbolos de extrema importância para as comunidades as quais esses saberes estão inseridos, práticas que não ficaram presas no passado, elas existem em suas continuidades e fazem parte da economia contemporânea.

A cidade que acolheu um grande número de migrantes, recebe em contrapartida uma riqueza intangível no campo da cultura, e agora precisa reconhecer esses fazeres que ampliaram o seu repertório cultural, que hoje é referenciado como Patrimônio Cultural Imaterial , alguns “reconhecidos” e outros não. São formas de expressão artísticas e lúdicas, crenças, rituais, artesania, todo esse universo inscrito nas nossas subjetividades, configurando as referências identitárias individuais e a do coletivo, que vão continuar existindo, apoiadas ou não pelo poder público.



Falo dos foliões e mestres reiseiros, que aqui chegaram com toda a sua bagagem cultural e histórica, trazendo do mundo rural as suas crenças que se imbricaram aos costumes dos bairros periféricos que habitam, nos lembrando a cada ciclo natalino, assim como foi contado pelos jesuítas a viagem dos magos ao encontro do novo rei; falo também de Dona Aristéia que lá no bairro das Palmeiras por quase quarenta anos, ensinou aos meninos e meninas como era o seu São João em Pernambuco, dizendo através daquelas vestimentas que remete ao tempo imperial, que pobre também gosta de luxo e nasceu pra brilhar; e o artesanato, feitura de mulheres empreendedoras, que transformam a linha, o couro, a madeira em utensílios e arte, carimbadas pelas suas emoções, crenças e esperanças; nos versos dos cordelistas, que já fui até homenageada, onde nasce os sonhos, mas onde também se faz a crítica ao perverso sistema; nas inúmeras procissões que acompanhei, e até anjo fui em devoção a Conceição; nos doces de São Cosme e Damião que pegávamos e a noitinha íamos no terreiro ver os Erês festejando seu dia, e não havia nenhuma censura nisso; nas rodas de capoeira que faz acordar a cidade com seus berimbaus e atabaques, soando: negro saiu da senzala e parece que não entenderam isso, mas Mestre Machado com seu autêntico samba de roda do Recôncavo baiano conclamava esses direitos; no doce de goiaba feito pela minha madrinha e por todas as mulheres da cidade que na magia do açúcar transformava a fruta que nos referencia; no presente de Iemanjá que já é tradição no lugar sagrado que é a Praia das Pedrinhas, protagonizado pela doce Mãe Marcia d’Oxum; nos tapetes de Corpus Christi que rompe as barreiras entre o sagrado e o profano pra mostrar toda beleza construída por mãos que pedem paz ; nas feiras livres que tradicionalmente o gonçalense frequenta pra comer pastel e tomar caldo de cana ; em muitos outros fazeres, festejos, expressões e lugares onde as resistências são exercidas através das práticas culturais para que a memória não se apague.


Em um tempo em que a ordem é viver o imediato, pode parecer que estou divagando ou sentindo nostalgia, mas posso garantir que esse discurso se faz necessário para que diretrizes áridas e excludentes, que insistem em manter no anonimato as culturas populares encontrem enfrentamentos por sólidos argumentos para que seus portadores vivam um passado - presente, numa transmissão consensual e contígua das tradições históricas e com todos os seus direitos garantidos.


Com certeza já se faz urgente trazer para as pautas de governo a necessidade de políticas públicas que contemplem a preservação do PCI no município. Não se trata aqui de inventar a roda, pois essa é uma reivindicação que vem de longe e que está contemplada na Constituição de 1988 e chancelada pelo Decreto Federal 3.551 de 2000, inspirando vários estados e municípios Brasil à fora , com comprovadas ações legais para essa salvaguarda, mas que infelizmente ainda não encontrou o caminho de São Gonçalo.

Não estou em hipótese alguma desprezando o esforço de alguns membros do legislativo municipal que direcionam seus esforços para aprovarem seus Projetos de Leis que tornam alguns desses fazeres aqui citados como Patrimônio Cultural Imaterial de São Gonçalo. O que quero dizer é que essas práticas na verdade já são PCI, o que uma Lei precisa contemplar é sobretudo salvaguardá-las, através de diretrizes que garantam as suas sustentabilidades e continuidades, não pode ser apenas uma homenagem prestada. A validação do registro desses patrimônios só se dará com uma política específica de um organismo municipal, com diretrizes voltadas para o cuidado com o patrimônio cultural, validada por pesquisas com metodologias eficientes e comissões avaliadoras que tenham essa competência e se possível vinculadas a uma universidade.


Pensar e realizar ações para preservação do patrimônio cultural é trabalhar para o desenvolvimento social local. Acho que deixei a dica! Não se trata de nenhum bicho de sete cabeças, e nem de “mula sem cabeça” para decifrar como se fosse esfinge, com a mão na massa os sonhos sempre se materializam.

 

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Verônica Inaciola é Doutoranda em Ciências da Religião, Mestre em Ciência da Arte e Pedagoga


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