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Grande Prêmio de Neves: música e automobilismo na cidade de São Gonçalo - por Erick Bernardes


Foto: Reprodução/Arquivo
Foto: Reprodução/Arquivo

Umas das recordações bem marcantes provinham das pancadas de régua e berros que o professor Gravatinha Borboleta dirigia a Patápio. Sim, verdade, o estudo de música durava horas a fio. Entretanto, o ensaio só não se tornou mais torturante por causa do espetáculo que os dois realizariam na semana seguinte, quando abririam o Grande Prêmio Brasil de Automobilismo.


Havia quem dissesse que o músico português Joaquim Fernandes (vulgo Gravatinha) naturalizou-se brasileiro e obrigou o filho Patápio a participar com ele do espetáculo de abertura da segunda corrida de carros do Brasil. Gravatinha Borboleta vestia-se quase sempre chique mesmo, preparava-se com esmero usando gravata e tudo, daí o apelido ter caído como luva. O lusitano só não mostrava elegância nas maneiras como educava Patapinho, coitado do garoto, dava para ver as marcas avermelhadas das surras que a criança tentava esconder. Moleque bom nos acordes do jazz e do chorinho, nascera para isso, empenhava-se muitíssimo nas notas mais complicadas. Acaso errasse o compasso, perdesse o tempo do sopro na flauta, recebia porrada do pai. Educação era assim! Ignorância. Mas que podia fazer o menino Patápio? Importava treinarem logo para a apresentação musical de Neves, pois talvez até ficassem famosos, sonhavam.


Foi em 19 de setembro de 1909, na cidade de São Gonçalo, o lugar onde a segunda corrida oficial de automóveis aconteceu. Dizem que, naquela época, Nilo Peçanha começara a presidir o Brasil, e a cidade gonçalense estava em polvorosa naquele ano que se revelou cheinho de importâncias. Incrível, corrida em Neves, um marco para a história nacional. Os organizadores programaram a tão esperada apresentação musical para as dez horas da manhã, o espetáculo destinava-se a alegrar os expectadores antes de os carros velozes darem partidas em seus motores envenenados, por volta do meio dia. O dia prometia. Belas melodias dariam sabor maior antes da largada e certamente configurariam maneira inteligente de aquecer os ânimos de quem decidira prestigiar ao evento.

– Senhor Gravatinha Borboleta! O senhor não aceita abrir o Grand Prix não? Será semana que vem, uma bolada em pagamento. O próprio presidente Nilo Peçanha estará lá. Cobertura de rádio para o mundo todo. Topa?

Desnecessário dizer que o Gravatinha aceitou de súbito, jamais perderia a segunda corrida de carros brasileira a realizar-se desta vez em São Gonçalo. Afirmam os entendidos que a primeira competição deu-se em São Paulo, mas não foi tão pomposa assim. Não tocaram lá na “terra da garoa” músicas boas como aqui, seria hora de Gravatinha Borboleta mostrar sua excelência profissional – e o show de abertura do segundo Grand Prix do Brasil serviu de estreia.

Chamaram os dois, pai e filho, para realizarem jazz e chorinho, pois era hora, urgia entrarem no palco. Prepararam-se bem, o espetáculo de abertura já começava, ansiedade elevada à quinta potência, tremedeira nos dois... e tudo correu direito. Perfeito. Tocaram Chiquinha Gonzaga, Ernesto Nazareth, Jean Schwartz e Eddie Morton. A plateia esvaiu-se em aplausos; ovações vararam as ruas de Neves – e o público foi ao delírio. Quem visse Patápio sorrindo jamais imaginaria o sufoco que foi chegar até ali. Quanto ao Joaquim Gravatinha, esse empinava o peito gordo feito galo de roça marcando terreiro, empolgado. Necessário descer agora, reconheceu, é hora da corrida.

A largada foi movida a capotagens e derrapadas, uns pilotos mais espertos seguiram firme até o final. Bandeiras quadriculadas agitadas em Neves, chegada animada, troféus, champanhes, garotas faceiras, enfim. A rádio anunciou o sucesso do Grande Prêmio Brasil de Automobilismo, lá pelas tantas encerraram tudo. Na saída: aplausos, muitíssimas palmas em reconhecimento certo, havia até gente estrangeira marcando presença na cidade. Elogios verbalizados? Claro que sim, a dupla de brasileiros flautistas não saiu do bairro sem uma enxurrada de aclamações. O comércio lucrou muitíssimo com políticos de longe hospedados na cidade, vinham dos mais diversos estados, no intuito de assistirem aos músicos e aos carros de motores possantes.

Resumo da ópera, ou melhor, de choro e jazz, todas as atrações serviram de prenúncio às paixões nacionais: carros quase voando e música de qualidade. Quem venceu a corrida de São Gonçalo? Quer saber quem saiu ganhador? Melhor pesquisar no Google, porque ninguém fez questão de recordar o número um do pódio. Porém, de uma coisa o leitor pode estar certo, o show de flautas ficou para a história, e o tal Gravatinha Borboleta e o filho Patápio viraram lenda lá para os lados do bairro de Neves.


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Publicado originalmente em 26/11/2018.

 

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Erick Bernardes é escritor e professor mestre em Estudos Literários.


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