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Manejo equivocado do Defeso e sobrepesca põem em risco caranguejos de São Gonçalo

Segundo pesquisadores, degradação ambiental e cata predatória do crustáceo aceleram desparecimento do animal da Baía de Guanabara


Por Felipe Rebello

Caranguejo uçá ainda vivo para ser vendido/Foto: Reprodução
Caranguejo uçá ainda vivo para ser vendido/Foto: Reprodução

Se você, leitor do Daki, tem acompanhado nossa série de reportagens sobre o período de Defeso do caranguejo nos mangues de São Gonçalo (aqui e aqui), certamente já se deparou com o posicionamentos do poder público, na figura da Prefeitura, e dos caranguejeiros acerca desta questão, que envolve preservação ambiental e sobrevivência econômica dos catadores.


Nesta terceira e penúltima matéria, abordaremos a perspectiva de um terceiro personagem, tão protagonista e importante quanto os anteriores. Seu nome é Ucides cordatus, mas os íntimos o chamam por “caranguejo-uçá” ou simplesmente “uçá”, o crustáceo mais comum nos mangues da Baía de Guanabara e nos pratos dos restaurantes de frutos do mar da região.


Mas quem é o uçá?

O uçá é um caranguejo comestível que vive na lama do mangue e não deve ser confundido com seu primo, Cardisoma guanhumi, vulgo guaiamum, que também é comestível, porém vive em uma região mais terrosa e distante da água.


O uçá se alimenta principalmente da serrapilheira, que são detritos vegetais que vão se acumulando no solo e depois decompostos por fungos e bactérias.


O ilustre crustáceo desempenha um importante papel biológico ao consumir essas matérias, mas também por escavar e revolver o solo do mangue, permitindo a oxigenação, a liberação de gases, além de trazer as matérias orgânicas enterradas na lama. Funções importantíssimas para a saúde do mangue, que serve de berçários para diversas espécies de animais que se utilizam de suas raízes intrincadas e sua abundância de nutrientes para desenvolver seus filhotes.



Então, qual a importância do Defeso para esse personagem ilustre?

O Defeso do caranguejo é a restrição da pesca destes animais durante seu período reprodutivo. O pesquisador de mangues e doutor em Biologia Marinha pela UFF, Fernando Neves, esclarece sua importância:


“O Defeso é importante porque nada mais é do que a interrupção da cata do caranguejo no período reprodutivo. Por isso que a definição do Defeso depende também de algumas características ambientais. Então, o Defeso aqui na Baía de Guanabara tem que ser respeitado justamente porque é o período em que fêmeas estão ovadas. Uma fêmea produz centenas, até milhares de ovos, então tirando fêmeas no período reprodutivo, você acaba, literalmente, com a população desses indivíduos", explica Neves.

Fernando Neves: "Não adianta fiscalizar só quem vende porque é o lado mais fraco."/Foto: Reprodução Facebook
Fernando Neves: "Não adianta fiscalizar só quem vende porque é o lado mais fraco."/Foto: Reprodução Facebook

Por ser uma atividade que não precisa de equipamentos especiais, a cata do caranguejo é de enorme importância para as comunidades locais. Em alguns casos, é a principal atividade e fonte de renda do trabalhador. Daí a importância do Seguro Defeso para o caranguejeiro. Para outros, serve como um relevante complemento da renda familiar ou mesmo para subsistência.


Com o aumento da crise econômica, cada vez mais famílias estão recorrendo ao mangue, mas isso acaba gerando outro problema: a sobrepesca. A sobrepesca é quando retiramos mais animais do que eles são capazes de se reproduzir naquele espaço de tempo, gerando um déficit populacional.



O biólogo alerta para algumas questões importantes que não são levadas em consideração, o que acaba agravando o problema. Como o desajuste do Defeso em relação às espécies, que têm períodos e locais diferentes de reprodução.


“Existem questionamentos em que o período do defeso não bate especificamente com o local que aquele pescador está atuando. Têm locais em que o defeso não é ajustado perfeitamente com o período reprodutivo da espécie. Então isso que tem que ser avaliado perfeitamente", revela Neves.


O estudioso relata, ainda, que são os próprios caranguejeiros que chamam atenção para esse desajuste, que não é levado em consideração pelos órgãos de meio ambiente e da pesca do município:


"O pescador me diz ‘vem cá, esse período ele está ajustado não, tem que ser ajustado um mês à frente, porque eu ainda estou vendo andada do Caranguejo fora do período do Defeso’. Não adianta só ficar na cobrança e na fiscalização do catador, por que o catador precisa do dinheiro e está se virando. Não tem renda. Então ele vai lá [catar caranguejo], nem todo mundo recebe [Seguro] Defeso", afirmou.


Perda da Qualidade Ambiental

Segundo biólogos e especialistas, a Baía de Guanabara vem sofrendo há décadas com a degradação ambiental resultante das atividades humanas, como o desmatamento, mas, principalmente, o esgoto que é lançado sem tratamento nos manguezais, afetando toda a cadeia alimentar do ecossistema e dificultando a reprodução do caranguejo, que está cada vez mais escasso nestes ambientes.


“A Baía Guanabara se tornou uma latrina, para se pensar na baía é preciso pensar em saneamento básico”, afirma Márcia Mendes, professora com doutorado em Meio Ambiente e mestrado Engenharia Ambiental e Sanitária, ambos pela UERJ.


Márcia Mendes, que é autora do livro Pescadores da Baía de Guanabara: uma história de lutas e de resistência (2017) aponta para o grave problema ambiental na Baía, resultante de um misto de falta de consciência e ausência de saneamento básico, uma vez que as redes de esgoto estabelecidas não dão conta de escoar a demanda, mesmo depois de milhões já terem sido investidos em projetos de despoluição que se mostraram fracassados ou insuficientes.

Marcia Mendes: "O mangue é um berçário para diversas espécies"/Foto: Reprodução Facebook
Marcia Mendes: "O mangue é um berçário para diversas espécies"/Foto: Reprodução Facebook

A degradação ambiental gera diversos danos e prejuízos para quem vive da pesca, porém existem dois impactos diretos na vida do caranguejeiro. Um deles são os problemas de saúde, principalmente os de pele, resultantes da contaminação da água.


O outro problema, que também vem da poluição, é a escassez do pescado, que não consegue se reproduzir nessas águas insalubres e migram para regiões mais ermas, obrigando o pescador a se deslocar para maiores distâncias. Em muitas regiões já não existem mais caranguejos.


O que pode ser feito?

Os pesquisadores Fernando Neves e Márcia Mendes, apontam para soluções complementares que envolvam homem e natureza, atividade econômica com sustentabilidade, e a recuperação do bioma como um todo. Ações coordenadas que garantam a sobrevivência local, do mangue, dos caranguejos e dos catadores, através de intervenções efetivas do poder público e educação ambiental com cidadania.


“É um trabalho de educação que tem que ser feito também, porque se eu não comprar o caranguejo no período de defeso, o catador sabe que naquele período não adianta catar", crava Neves, que arremata, vislumbrando o caranguejeiro como um aliado na luta da preservação ambiental na Baía:



“Não adianta fiscalizar só quem vende porque é o lado mais fraco. É o lado marginalizado da questão. [Tem que] Dar um treinamento para [o caranguejeiro] se ver como um ativista ambiental, ele seria nosso protetor do mangue, porque ele depende disso para se alimentar e manter a sua família.”


A professora Márcia Mendes concorda e complementa:


O mais urgente é discutir a degradação da Baía de Guanabara. O mangue é um berçário para diversas espécies, portanto proteger o caranguejo é, também, proteger o catador de caranguejo.”


Na próxima reportagem, traremos o posicionamento da Prefeitura sobre o Defeso, a proteção social dos caranguejeiros e sobre as ações desenvolvidas na área de proteção ambiental nos mangues da Baía de Guanabara.


Edição: Helcio Albano.

Felipe Rebello é professor e psicopedagogo.


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