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Buraco do pato e as pedaladas civilizadoras, por Erick Bernardes


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Comecei aquele sábado no intuito de buscar a bicicleta com preço baixo que encontrei no site da OLX. Verdade, morador recente de apartamento, engordando arrobas por causa da quarentena da Covid 19, a primeira ação de flexibilização da quarentena foi dar um pé na bunda do sedentarismo e me lançar outra vez na prática esportiva. Exato, fiz contato pela internet, comprei e busquei minha bicicleta seminova. Mas fui de ônibus e de máscara com símbolo do clube América de futebol. Claro, rumei ao encontro do vendedor residente do Morro da Coruja, depois Barro Vermelho e Vila Lage. Voltaria pela "vidreira", passaria perto do Paiva, quase chegando ao Porto Velho onde mora o nosso editor. Maravilha, lá fui eu, as primeiras pedaladas civilizadoras pós-pandemia.


Bom, necessário reconhecer que, no auge dos meus 91 quilos, a gravidade se revelou obstáculo incomum. Pesado. Desgastante. Precisava beber algo no caminho, boca sequíssima, cansaço: um palmo de língua pra fora e a vontade de parar. Indispensável confidenciar, estacionei a Montainbike num bar, morto de cansado e com sede. Pronto, um refrigerante Mineirinho urgente. Bicicleta encostada na parede. Sentei. Graças a Deus. Líquido geladinho fluindo gostoso goela abaixo, refrigerante de fato. Até duas mariolas fininhas e macias para arrematar eu degustei. Delícia, revigorado.


Um senhor com ares de Velho Barreiro, mas que se mostrou fã da concorrente Caninha da Roça, olhou sorrindo e lançou o previsível discurso fático: "tá abafado, né? Muito quente, que calor!". Confirmei com a cabeça. Assim é a vida em São Gonçalo, o cidadão já acostumado prevê o tempo apontando nuvem ou urubu sobrevoando baixo os rios contaminados. Seria um tipo de sortilégio? Justamente, gente de bar propaga adivinhações acerca do dia ensolarado como se dissesse "hoje vai dar dia bom, hein!". Viu aí, assim se inicia uma crônica a princípio despretensiosa sobre regiões pouco conhecidas de São Gonçalo. Questionei: "O senhor é algum adivinho?"

— Não, meu rapaz, sou não. Minha senhora esposa que é. Põe mesa com cartas, interpreta borras de café, joga búzios, vê coisas de deixar o cliente espantado. Ah, esqueci de dizer, ela dá consulta pertinho do monte, lá no Buraco do Pato. Dona Faba, vidente, conhece ela não? Famosa até.


Pois é, desnecessário afirmar que o nome do lugar me chamou atenção, Buraco do Pato. Onde é isso? Bem, fiquei sabendo que o tal lugar de nome exótico se estende dali onde eu estava até para os lados de Neves. O apelido da localidade segue até certa explicação lógica. Claro, houve uma chácara antigamente com lagoa sazonal. Quer dizer, durante tempo de chuva, era lago; em época de sol forte se transformava em buraco — mas os patos mantinham resistência, mesmo assim, em qualquer época do ano. Seco ou hidratado o buraco. As aves revelam fidelidade geográfica. Confesso que me senti tentado, Buraco do Pato, fui lá conferir pedalando.


Pronto, cheguei, Travessa Fatore, pertencente ao bairro de Neves. Sim, exato. A lagoa seca onde outrora nadavam patos e marrecos se localiza lá mesmo ainda. Tudo circundado por pés de mamona e carrapichos. Não tive coragem de bater palma e chamar a referida feiticeira Faba, esposa do cachaceiro do bar. Medo, hesitação, sei lá o nome disso. Certo é que evitei procurar a curandeira. Mas não adiantou. Do nada a senhora esquisita apareceu à minha frente. Sim, juro a você, aparição instantânea. Se fosse alguma ficção eu nomearia isso de epifania. Mas não. A imagem era real. O bafo de bode acusou a realidade. Ela me mostrou gengivas e gargalhou. Duas ripas apenas na cavidade bucal. Pavor. A velha ria sem parar, sonoridade medonha, escurecia.


Bem, decerto o leitor já entendeu que acabei saindo correndo. Não, correndo não, desembestei ladeira pedalando. Olhar para trás nem pensar. Na hora eu viraria pedra de sal, pensei. E foi assim, exatamente assim que conheci o lugar apelidado de Buraco do Pato. Vá lá tirar a prova!

Erick Bernardes é escritor e professor mestre em Estudos Literários.




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