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Entre lamas e lamaçais, ninguém mete a colher, por Erick Bernardes


Colhereiro: tipo de garça rosada com bico em forma de colher/Foto: Carolina Waite
Colhereiro: tipo de garça rosada com bico em forma de colher/Foto: Carolina Waite

Vou segredar uma coisa, pela primeira vez nesses anos de literatura preciso discordar do escritor português Fernando Pessoa. Não, o poeta nem sempre é o fingidor a inventar a dor que sente. Sofre-se sim, de fato, perde-se o lirismo característico em detrimento da melancolia consciente, ao ler o jornal on-line de política no começo da manhã. Agora é diferente, trágico, cruel, vontade de chorar, lançaram o Brasil na boca do lobo.


O caso de hoje começa com a nossa manifestação de indignação e repúdio por causa de um ato monstruoso, na ausência de vocabulário melhor: demoníaco. A manchete do Estadão veiculada no site funcionou como desjejum amargo: "Com Conama (Conselho Nacional do Meio Ambiente) nas mãos, Ricardo Salles aprova extinção de regras que protegiam manguezais”. Uma lástima, um comboio de cordas inútil chamado Ministério do Meio Ambiente que, em apenas duas horas de reunião, retira as leis de proteção aos manguezais, restingas e demais arredores hídricos do país inteiro.


Pois é, manhã sombria, caiu de madrugada o toró prenunciador da arrogância ministerial — e a relação trágica feita pela minha razão foi inevitável.


Sabe-se que São Gonçalo, assim como grande parte deste imenso país, se encontra circundado por fauna e flora preciosíssimas. E o que me chega aos olhos senão a informação dessa tragédia começada por quem deveria defender o bioma? Sim, exato, naquele dia larguei de mão a crônica que escreveria acerca de um sítio arqueológico na região de Itaoca. Verdade, desarmonia de pensamento. Abandonei a ideia. O texto de domingo sobre Itaoca jamais sairia bom, decerto que não. Concentração nenhuma. Melhor falar dos valiosos mangues em vias de aniquilamento. A lembrança das árvores e dos caranguejos provocou o grito da alma, contra a arrogância humana, por meio destas palavras soltas, antiestéticas. Mas para que serve a literatura sem jogo de linguagem numa hora dessas? Escrever também é atitude de resistência. Nossa restinga se converterá em deserto ou lixão daqui por diante, daí a crônica nasceu assim.

Não foram mais que três ou quatro anos passados quando conheci o mangue gonçalense na essência. Tratava-se de uma aula magnífica sobre ecologia do bioma municipal envolvida por uma explicação exótica, aliás, exótica é pouco. Nunca vi isso na minha vida. Estranho, estranhíssimo, necessário reconhecer. Quer saber? Eu conto. A aula da vez tomava como enfoque a árvore (ou arbusto) popularmente nomeada de mangue preto (Avicennia schaueriana) Sim, tipo de planta abundante em espaço gonçalense, totalmente ameaçada de extinção, apenas por ser MANGUE, e cujas propriedades e morfologia se aprendiam em palestra a céu aberto ministrada pelo Biólogo professor da universidade local. Ao redor, em formação de meio círculo, a galera estudiosa, alunos atentos ao mestre:


— Aqui, pessoal, detalhe importante. Folha da planta expelindo o sódio extraído das margens da Guanabara. Um modo de adaptação vegetal da “Avicennia”. Ou retém e morre, ou expulsa o cloreto de sódio pela folha, espalhando raízes pela lama natural.


Incrível assistir à fala do professor ilustrando a cena. No meio da explicação, uma criança, filha de pescador, apareceu lambendo a folha salgada de uma das árvores. Exibição, claro, gargalhadinhas aos montes. Traquinagens de menina. Esfregava a língua no sal e gargalhava, diante da curiosidade dos outros. Inacreditável, havia sódio realmente nas folhas. E assim o professor e guia nos informou:


— O salitre degustado pela criança provém das excreções decorrentes do sódio contido no solo doravante encharcado pela maré que vem da baía, de onde o pau-de-mangue nutre a sua seiva. É litoral da Guanabara, galera, olha a quantidade de vida gerada por aqui, observem as centenas de caranguejinhos uçás. A absorção acontece por osmose, recordem da sala de aula — e plantas terrestres normalmente morrem por causa da umidade salina. Nesse caso não, galera, a planta se adaptou, e é nossa a grande preciosidade ao redor. Tudo lindo, manguezal é fonte de vida e de alimento, devemos amar isso aqui.



Galeria de fotos: 1 - Bosque de Rizophora ou mangue sapateiro. 2 - Caranguejo marinheiro. o 3, 4, 5 e 6 - Avicennia schaueriana ou mangue preto. 7 - Colhereiro. Autoria: Carolina Waite e foto 1 de Fernando Pinto.


Em suma, está claro que não configura novidade alguma a natureza ter lá seus caprichos estéticos. Exato, aqui mesmo em São Gonçalo o bioma cisma em ostentar outros magníficos vegetais tão peculiares e não menos belos: mangue sapateiro ou mangue vermelho, mangue preto e o mangue branco, três espécies exclusivas do manguezal em vias de aniquilamento. Tem até caranguejo marinheiro e a linda ave rosada de nome colhereiro — e o município nem sequer sabe disso. Quer conhecer tais maravilhas nativas? Corre lá, antes que se tornem peças de museu. O Ricardo Salles já começou, e eu tentando fingir temática casual, tal qual escrita ausente de inspiração.


Nota: vetaram a decisão do Ricardo Salles, dois ou três dias depois desse absurdo ter ido a público. Só não sabemos até quando esse ir e vir jurídico se sustenta.


Referências:


https://www.google.com/amp/s/agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2020-09/justica-suspende-decisao-do-conama-que-revogou-resolucoes-ambientais%3famp


Assista ao vídeo gravado pelo Biólogo Fernando Pinto:



Erick Bernardes é escritor e professor mestre de Estudos Literários.




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