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Meia-noite: sub-bairro de Santa Izabel ou assombro gonçalense, por Erick Bernardes


A própria definição de lenda revela claramente o seu caráter sobrenatural ou fantástico. No entanto, o que pouca gente se dá conta é do efeito moralizante dessas histórias criadas e contadas oralmente através dos tempos. Em São Gonçalo, duas dessas narrativas de horror se destacam e, por incrível que pareça, estão diretamente ligadas à Estrada da Meia-noite, território transformado em sub-bairro homônimo, lá mesmo em Santa Izabel.

Conta-se ter existido em São Gonçalo, pelos idos do século 18, uma senhora casada e moradora das cercanias onde hoje é o bairro Mutuá. Ela se enamorou pelo jovem padre da região. O sacerdote, por sua vez, não se deu por rogado e travou relacionamento apaixonado com a bela esposa do fazendeiro mais poderoso do lugar. Isso mesmo, dois safadinhos de outrora, várias puladas de cerca, encontravam-se duas vezes por semana em um casebre capenga para os lados de Santa Izabel. Bem, até aí um caso de amor proibido, aliás, proibidíssimo, pois ambos sabiam dos riscos daquele relacionamento exótico. Perigoso. Arriscado. Como tiveram coragem? Em São Gonçalo funcionava a lei do mais rico. Porém, aceitaram os riscos.

Certa vez, naquela sexta-feira treze de muita chuva e sensação de abafamento, encontraram o corpo do tal padre apaixonado boiando no açude próximo da porteira. Exatamente, castigaram-no, mataram o sacerdote com requintes de maldade e o expuseram para quem passasse ali e pudesse ver. Pronto. Assunto encerrado. Mas e a tal mulher amante do padre falecido? Bem, os antigos juram haver gritos, gemidos medonhos e cascos de animal a rondar a região de Santa Izabel após a meia-noite. Isso mesmo, caro leitor, adivinhou. Dito e feito. Mulher do padre vira o quê? E até hoje afirmam ouvir a tal Mula-sem-cabeça transitando pela região apelidada de Estrada da Meia-noite.

Outro caso bastante popular para os lados de Meia-noite é o fantasma conhecido como a Mulher da Vela. Verdade, alma penada, espírito vagante, isso tudo eu também escutei por lá. História de uma bela e pálida senhora de vestes alvas e finas caminhante pela madrugada a assombrar os transeuntes. Teria aquela mesma alma penada (a mulher do padre) sido expulsa do inferno e também impedida de pisar no paraíso? Não sei, reconheço certo receio sobre o assunto. Caso sombrio, sobremaneira sombrio. Em se tratando de mulher falecida do padre, até o "cão" receia proximidade. Cruz-credo! A Estrada do Meia-noite de fato me dá arrepios. Pouca luz, excesso de mato, estive mesmo no lugar numa outra ocasião. O velho Santana, dono da mercearia do sub-bairro põe a mão no fogo pela história da Mulher da Vela surgida ainda em período colonial. Garante ser tudo verdade. Mas deixemos pra lá esse tema, porque é tarde. Os ponteiros já vão se juntar aqui em casa. Meia-noite, quem disse que consigo dormir agora?


- Nota do autor: as duas versões acima tiveram fontes distintas. A primeira tomou como referência um trecho do livro de Zeca Ligiéro acerca de narrativas de horror sobre SG, Teatro e comunidade: uma experiência (Editora da Universidade Federal de Uberlândia, 1983). Já a segunda versão deriva da narrativa oral fornecida pelo proprietário da mercearia Dois irmãos, o senhor Adonias Santana, nascido e criado no Meia-noite e que parecia se divertir ao ver o medo estampado em meu rosto (estava escurecendo).

Erick Bernardes é escritor e professor mestre em Estudos Literários.



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