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Nem tudo no Porto do Rosa são flores, por Erick Bernardes


É só parar e ler as manchetes dos jornais na parede da banca que me vem alguém e diz: “É... antigamente é que era bom”. Incrível, coisa mais chata esses comentários, situação impertinente. Eu, tentando concentrar na matéria de capa, e o inconveniente desviando minha atenção.


Uma pausa no corre e corre da vida só para ler a notícia ali estampada: “moradores reclamam do descaso da prefeitura com as ruas do Porto do Rosa”. Tentei ler sem distrair, não deu, infelizmente não deu, o chato do cidadão repetia como maritaca velha: “antigamente era bem melhor, não havia essa dificuldade de locomoção”.


Bem, necessário então reconhecer que o velho me fervera o sangue e alimentara esse bichinho hereditário chamado irritação. Pois é, pavio curto, no quesito irritação meu pai era assim também. Virei para o lado, vermelho e franzido na testa, e então soltei a pérola:

— Era melhor mesmo, meu senhor? Está certo disso? Você sabe o tempo que se levava de jegue, saindo da porteira do antigo capitão Antonio José de Souza Rosa, até a linha de trem? Se o gonçalense passasse mal e precisasse de médico, só pra buscar ajuda, decerto perderia metade da chance de sobreviver.


Pois é, o inconveniente cidadão me olhou de soslaio. Cara amarrada, isso mesmo, de jeito algum ele conhecia o passado do bairro que outrora constituiu Olaria e também fazenda. Não me aguentei e narrei a história de fundação do bairro Porto do Rosa.


— Olha, meu senhor, foi no tempo que a velha porteira da fazenda servia de ponto de referência para carga e descarga de mercadoria produzida na olaria. Batizaram o lugar com o próprio sobrenome Rosa, dono da propriedade, e registro último dessa parte de São Gonçalo. É válido afirmar ter sido a vizinhança um imenso atoleiro vermelho. Imagine o senhor trepado no lombo do burro! Pois é, ainda que o animal soubesse que um amigo é pra acudir o outro, o senhor levaria uma eternidade pra transitar por lá. Isso sim.


Inegável reconhecer que o idoso se calou, parou de comentar o jornal e encerrou o repertório chato — e só assim resolveu partir calado. Moral da história: às vezes, o conhecimento constitui veneno social. O esclarecimento tonteia o cidadão que só repete as coisas. Claro né, quem mandou falar demais? Nem tudo de antigamente era bom assim. Melhor eu mesmo não mexer mais nesse vespeiro. Jamais mostrarei os fatos, porque a contrapelo o senso comum revela suas máculas.

Erick Bernardes é escritor e professor mestre em Estudos Literários.


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