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Praia da Luz: a natureza gonçalense sob o olhar de Lady Graham - por Erick Bernardes


Maria Callcott, retratada por seu segundo marido, Sir August Callcott
Maria Callcott, retratada por seu segundo marido, Sir August Callcott

Tentei não ficar ansioso ao ler parte do pequeno manuscrito que acabava de obter na velha livraria britânica. Sim, na época comprei um caderninho surrado, escrito metade em língua inglesa e outra metade em português ruim, e não via a hora de chegar no albergue que aluguei na periferia de Londres. Achei incrível, a letra arredondada em papel grosso identificava-se como pertencente à pintora e escritora britânica Lady Graham. Necessário pagar o preço pelo volume precioso. Claro, ainda mais em se tratando de um diário narrando um caso amoroso vivido pela artista aqui no Rio de Janeiro, mais especificamente na cidade de São Gonçalo. Pois é, inacreditável, uma cidadã europeia identificar-se com a paisagem da Praia da Luz e, em vez de colorir as telas com as cores tropicais, enche seu vazio coração de um amor incompatível.

O caso era o seguinte: eu havia conseguido um razoável intercâmbio estudantil com fins de deixar tinindo o meu inglês capenga quando aluguei um espaço na capital britânica. Sem grana e sem círculo de amizades, restou-me preencher as horas do ócio com programas gratuitos e sem maiores exigências burocráticas. Um dos lugares escolhidos revelou-se a mim como uma mistura de Real Gabinete Português de Leitura com estalagem do filme O corcunda de Notre Dame. Pois bem, era a antiga livraria Fisher. Lugar exótico, com jeito de boteco medieval ou cervejaria irlandesa, a loja vendia pouco, mas a entrada era de graça, e é claro que isso me interessou. Lá chamara a minha atenção o feitio eclesiástico de um livrinho vermelho: era um diário, e narrava quase um ano inteiro da vinda da pintora e escritora Lady Graham para o Brasil. Incrível, um achado mesmo. Li que a autora do diário escrevera inúmeros contos e ilustrações baseados em experiências pessoais. Mary Graham, uma jovem britânica que costumava recriar cenas literárias para os seus romances e posteriormente transpunha, via imaginação, esses cenários para as telas dos seus belíssimos quadros.


Sabe-se que a adorável Graham revelou-se artista talentosa desde cedinho e tão logo casou-se com o fidalgo da marinha escocesa, decidiu rodar boa parte do mundo com o marido. No entanto, assim que tornou-se preceptora da princesa Maria da Glória, filha mais velha do Imperador Dom Pedro I, a artista aportou sozinha no solo brasileiro e aqui ficou durante um tempo. Ao seguir o conselho do cavalariço imperial, Lady escolheu São Gonçalo como cenário dos seus trabalhos artísticos. A família do cuidador de cavalos possuía uma bela granja na região onde outrora pertencera aos índios Temiminós, um ramo do grupo dos Tamoios. Lá a família do funcionário do Império abrigou a dama inglesa que deleitou-se com os ares tropicais das praias locais. A brisa aliviava o calor potente e convidava ao piquenique solitário. Bem, não eram tão solitários assim os tais passeios regados a sucos e torradas à beira-mar. Claro que não, bela e graciosa, tão logo lanchava sobre a toalha xadrez, ela montava o cavalete para pintar o lugar – enquanto um olhar masculino não muito distante mirava-lhe de soslaio. Sim, um rosto jovem e viril contemplava a beleza da visitante e sorria. Coisas da natureza, o rústico pescador local da Praia da Luz contrastando com a sutileza da imagem alva da moça britânica mostrando os dentes também. Bem, para ser breve afirmo que a diversidade entre Mary Graham e o pescador Teófilo fez vistas grossas à improvável paixão. Inevitável, amaram-se, envolveram-se, rolaram na praia deserta além do imaginável. O bronze nativo do corpo fundiu-se com a mais pura louça inglesa cortesã – e São Gonçalo ganhou destaque nas pinturas e letras da artista europeia. Ele tocava violão de ouvido, ela pincelava o amor e escrevia com a erudição. Sim, este mesmo diário que tenho agora em mãos abrigou um dia lágrimas de amor interrompido. Enquanto leio agora e imagino a cena, a canção de Dorival Caymmi vibra no meu celular amarrando os dois amantes. Gostoso de ouvir: “O pescador tem dois ‘amor’, um bem na terra um bem no mar”. Providencial canção, não é? Sim, Teófilo era casado e a inglesa também. Inegável reconhecer que caiu-me como luva a melodia do cantor baiano na animação criada na minha cabeça. Um romance tropical sob o luar: a areia fina, a noite clara, os amantes besuntados de suor e chorando. E terminou desse jeito melancólico. A partida da inglesa amada, a tristeza de Teófilo vendo o barco sumir no horizonte da Guanabara e a música. Ah! Que bela música: “O bem de terra é aquele que fica. Na beira da praia quando a gente sai... que chora... mas faz que não chora, quando a gente sai”.

Foi o fim de uma paixão proibida, pois cada qual com seus dois amores, seria no mínimo imprudente. Verdade, eles já eram comprometidos antes de se conhecerem, urgia a ela retornar à Europa o quanto antes. O comandante da esquadra escocesa descobrira tudo por meio de uma carta entregue por uma das damas imperiais. “Inveja de alguma mulher não correspondida”, escrevera no seu diário a jovem Mary Graham. Soube-se que mais tarde São Gonçalo foi tema da exposição de arte na galeria da capital inglesa. Assim, via-se em Londres o espelho d’água da bela praia gonçalense, recriado na tela e, ao lado da moldura, um outro quadro exibindo o torso do homem moreno sobre a canoa de imbuia, lançando as redes ao longe. Impossível ao meu imaginário não misturar as coisas, a passagem de Lady Graham pelo Brasil e a voz aveludada de Caymmi soprando aqui na minha escrivaninha como o vento da Guanabara: “O bem do mar é o mar, é o mar. Que carrega com a gente. Pra gente pescar”.


***

Publicado originalmente em 14/10/2018.


 

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Erick Bernardes é escritor e professor mestre em Estudos Literários.


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