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A Praia de São João e a lenda do caranguejeiro de São Gonçalo - por Erick Bernardes


Caranguejeiro de Itaoca/Foto: Reprodução
Caranguejeiro de Itaoca/Foto: Reprodução

O sol já mergulhava nas águas da Baía de Guanabara quando Batista chegou a casa carregando meia dúzia de cambadas de caranguejos capturados nas ilhas próximas da Praia de São João. Pronto, já era o suficiente para vender na feira de Alcântara no dia seguinte. Não lhe faltaria o sustento de dois dias ao menos nem as refeições da família ficariam rasas de nutrientes. O mangue estava ruim, caranguejos pequenos, até para amarrar os crustáceos a fim de comporem cambadas bonitas e chamativas aos fregueses ficava difícil. Entretanto, João Batista dos Santos, mais conhecido como Batista do Mangue, trazia em seu espírito o dom da propaganda de rua. Sim, verdade, aquele senhor proclamava com voz melódica os seus caranguejos famosos capturados perto do litoral da Praia de São João. Incrível, por meio de versos e ritmos o catador (ou será pescador?) conseguia agradar aos frequentadores da feira de domingo. Sua prosódia ecoava: “Dou-lhes uma ou duas cambadas de quebra de caranguejo/ Acaso a nobre senhora souber o esforço deste homem em seu nobre desejo”. Dessa maneira, vendendo e recitando, o sagaz declamador divertia os fregueses abrindo perspectivas de vendas e gorjetas generosas.


A praia de São João é um dos lugares onde se pode enxergar a parte niteroiense da Baía de Guanabara. Embora a poluição das águas prevaleça, sabe-se que não é pouca a variedade de orlas a margearem o município de São Gonçalo. Decerto o esgoto contamina o cinturão litorâneo, uma pena mesmo, pois seria ótimo mergulhar nesses recantos aquáticos. Mas não dá, impossível, há dejetos sendo jogados sem o mínimo de tratamento sequer. Mesmo assim, juntinho à Praia das Pedrinhas e à Praia da Luz está a Praia de São João, compondo a importante faixa litorânea que serve de meio de sobrevivência para pescadores e catadores — sem contar o comércio dos quiosques e bares que animam a região afeita ao entretenimento.

Criado desde moleque na praia dedicada ao santo do mês de junho, Batista vez ou outra pegava o barco do tio para brincar e fugia com os primos em direção aos mangues das ilhas próximas — e foi lá que aprendeu a arte de enfiar a mão nas tocas enlameadas no intuito de retirar os caranguejos maiores e viçosos. Pois é, infelizmente a ele pouca alternativa havia além da lama mole, já que estudara pouco nesta vida agreste de fatos duros. Porém, amante dos livros, Batista fazia questão de ler os clássicos que o zelador da Igreja da Luz lhe emprestava. Lia de Homero à Cecília Meirelles quando ainda era jovem; no tempo em que era possível nadar na praia dedicada ao santo das festas juninas. Mais recentemente, em torno de um mês ou dois atrás, sentado no calçadão, o caranguejeiro observava as águas poluídas da Guanabara sem abrir mão da leitura diária. Eclético como bom artista antenado com seu tempo, o catador sabia bem sobre o panorama cultural e os saraus literários realizados em São Gonçalo e Niterói. Gostava muitíssimo dos Cânticos de Salomão e também da Literatura de Cordel de Zé Salvador, além das Trovas de Renato Cardoso e Mariângela Tavares, dos poemas de José Francisco Rodrigues e Ivone Rosa. Sonhador em demasia, e adorável na convivência diária, construiu amizades e até conquistou fãs das suas declamações. Inacreditável, a rudeza do contato com as unhas dos animais cascudos e a lama empapando os poros não lhe afetaram em nada a sensibilidade para a poesia. E ele compunha seus versos com a clássica inspiração do trabalho misturado à arte da propaganda de quem sabia vender e ganhar o pão.


Na Praia de São João, o sonhador Batista conheceu muita gente boa e chegou até a tornar-se figura popular pelas redondezas. Ao oferecer o seu produto extraído das tocas escuras do chão lamacento, Batista do Mangue recitava poesias em rimas ricas que compunha ao lado dos filhos pequenos e da esposa admirada. Em vez de gritar como os outros vendedores faziam, ele lançava no ar as palavras macias: “Dou-lhe uma cambada e de quebra dou-lhe um beijo/ Freguesa assídua e amiga de que o mimo lhe serves/ Se do poeta caçador dos caranguejos souberes/ O que há por trás de tanto esforço, desejo”. E de fato, o desejo do caranguejeiro consistia em ser artista em vez de oferecer aos gonçalenses as cambadas arrancadas do mangue perto da praia de São João. Hoje, confesso que perderam dele o paradeiro, evaporou-se do mapa.

Dizem por aí que João Batista dos Santos foi morar para os lados da lagoa de Maricá. Vizinhos antigos afirmam ter Batista do Mangue recebido uma revelação do céu, quando então largou tudo e rumou para outros lugares. Os donos dos quiosques da orla de São João relataram que o caranguejeiro versejador afirmou ter ouvido uma voz soprar-lhe a ordem santa: “preparai os caminhos”, a fim de propagar a poesia ao longe. E, assim, tão logo a expressão do além foi-lhe revelada, João Batista dos caranguejos empacotou objetos, juntou a família e o pouco de economias que tinha e sumiu no mundo como poeira ao vento.


>>>Publicado em 25/11/2018.

 

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Erick Bernardes é escritor e professor mestre em Estudos Literários.


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