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'Tenho que me esconder como se fosse criminoso', lamenta pescador de Itaoca

Caranguejeiros reclamam da rotina de perseguição e do não pagamento do Seguro Defeso


Por Felipe Rebello

Trabalhadores precisam trabalhar na clandestinidade/Foto: Acervo pessoal
Trabalhadores precisam trabalhar na clandestinidade/Foto: Acervo pessoal

“Agora Zilda tá sozinha, com os filhos pra criar. Às cinco horas ela acorda e prepara o café, depois, com outros pescadores, vai pro mangue de Magé!”


Esse trecho da música Baixada News, da banda Skank, ajuda a ilustrar a vida de centenas de pescadores que buscam, a duras penas, retirar seu sustento dos mangues da Baía de Guanabara.


É o caso de José Roberto, mais conhecido na região da Ilha de Itaoca, em São Gonçalo, como Tinguá, que ainda com 8 anos foi ensinado a se locomover pelos manguezais atrás dos famigerados caranguejos-uçás. Um saber ancestral passado de pai para filho, que envolve desde a leitura das marés como o minucioso rastreio e coleta manual dos caranguejos em suas profundas câmaras subterrâneas.


Hoje, aos 50 anos, Tinguá é uma figura conhecida dos mangues de Itaoca, sendo personagem, inclusive, de muitas crônicas do Erick Bernardes no Daki. Leia aqui, aqui, aqui e aqui.


Os seus conhecimentos e técnicas acumuladas são tão preciosos que ele ajuda biólogos e pesquisadores a desbravar os segredos do manguezal.


Apesar de todo orgulho e satisfação que tem de viver do mangue, Tinguá, nos últimos tempos, não teve motivos para sorrir.



Recentemente, dois caranguejeiros, companheiros de Tinguá na região de Itaoca, foram detidos pela fiscalização da Prefeitura por estarem comerciando o crustáceo durante o Defeso, que é o período de reprodução dos animais de acordo com cada espécie. Mesmo tendo direito, os trabalhadores não recebem o Seguro Defeso de R$ 1.100 pagos pelo INSS, dinheiro que poderia afastá-los da atividade ilegal durante o período em que estão proibidos de pescar.


Os caranguejeiros têm relatado dificuldades em ter acesso ao auxílio. Assim como a Zilda, personagem da música do Skank que vê no caranguejo a oportunidade de sustentar a família, muitos retiram do mangue sua subsistência. Seja uma forma de complementar a renda escassa ou mesmo utilizando o próprio caranguejo como fonte alimentar da família.


Com o aumento do desemprego e a crescente crise econômica, cada vez mais pais e mães de família recorrem aos manguezais.


“Eu tenho 50 anos de idade, desde 8 anos eu pego o caranguejo. Sempre corri atrás [do Seguro Defeso] e nunca consegui. Agora esse ano eu consegui dar entrada, mas no Ministério da Agricultura falaram que a minha carteira está para Brasília. É uma enrolação danada. Até hoje nada. Eu vou fazer o quê, se eu não recebi o [Seguro] Defeso ainda? Dei entrada, mas não tenho certeza se vou receber”, disse Tinguá.


Só quem tem direito ao benefício são pessoas que têm a profissão registrada no Ministério da Agricultura, órgão responsável em enviar a ordem de pagamento para a Previdência Social.


Ante o acirramento da fiscalização pela Prefeitura e a falta do Seguro Defeso, muitos destes homens e mulheres não possuem outra opção senão ir ao mangue e coletar caranguejos de forma ilegal numa tentativa desesperada de sustentar suas famílias.


Apenas para fins de comparação, cada animal é vendido pelos catadores por R$ 1 nas feiras livres. Atravessadores chegam a vender por R$ 5, e restaurantes chegam a cobrar R$ 15 por unidade, dependendo da iguaria.


“Falar isso dá até vergonha, mas você tem que andar como se fosse um criminoso. Tem que andar por dentro do mato escondido. Acampar no mato uma semana”, relata Renato, mais conhecido como Jicão, caranguejeiro da Ilha de Itaoca.


“Caranguejeiro fuça tudo. Está proibido, mas se ele não recebe o [Seguro] Defeso, ele vai lá e vai pegar mesmo. Eu acho que para ter mais caranguejo mesmo, tinha que pagar o [Seguro] Defeso das pessoas que não recebem”, complementa Tinguá.


Segundo os caranguejeiros, quando pegos, além de pagarem uma fiança de cerca de R$ 3.000 para serem liberados, ainda sofrem com a truculência policial.


Esses trabalhadores já marginalizados denunciam que, às custas de suas humilhações, outros tiram vantagem. De acordo com Tinguá, a grande maioria dos que recebem o Seguro Defeso jamais “molharam os pés na água”, mantendo barquinhos de fachada para se fazerem passar por pescadores. E Jicão é categórico:


“Dos pescadores de caranguejo que eu conheço 90% não têm a carteira [para receber o Seguro Defeso]. E outra coisa, 90% das pessoas que têm a carteira não são pescadores”, afirma Jicão, que até hoje não conseguiu tirar a carteira de pescador.



E como saber se quem pleiteia o Seguro é mesmo pescador? Como que faz para pegar caranguejo quando a maré está cheia? E quando a maré está seca? Como que se sabe qual é o buraco do macho e qual o da fêmea?


Uma das possíveis soluções apresentadas pelos pescadores é a de se exigir notório saber daqueles que dão entrada no benefício, ou mesmo que se faça algum tipo de prova prática. Este teria de se demonstrar conhecedor dos saberes ancestrais. Seria uma das formas de garantir que Tinguás, Zildas e Jicões não sejam usurpados das riquezas e direitos dos mangues.


A combinação perigosa de poluição, degradação ambiental e coleta predatória faz a população de caranguejos diminuir ano após ano.


Matéria atualizada em 21/12/2021 às 07h 53min.


Edição: Helcio Albano

Felipe Rebello é professor e psicopedagogo.


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